terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A Ordem - Sombras Vindouras Capítulo II

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SOMBRAS VINDOURAS
Parte I
Ruínas do Repositório Secreto dos Vizjerei, Fronteiras, 1272
Em meio à imensa e profunda escuridão do que aconteceu em seguida, haveria pouco tempo para meditar sobre o momento em que o esfacelamento da linha divisória entre este mundo e o outro se acelerou até sair de controle. A explosão na montanha tinha se parecido com dois guerreiros investindo para a própria ruína, com espadas se movendo em relances, que pareciam ter saído ilesos do impacto por um instante antes de começarem a cambalear, abrindo as bocas sangrentas, e caírem de joelhos, feridos mortalmente.



Mas talvez aquele fosse o momento, no calor infernal e eterno das Fronteiras, com as ruínas assomando a distância. Quando os dois viajantes se aproximaram do topo da última duna, talvez
tivessem ouvido um retinir, como um pedaço de metal atingido por um martelo e vibrando numa
frequência fora do espectro auditivo que os deixara inquietos.

A dupla parou para beber água. A luz do sol faiscava pela extensão interminável de areia e queimava a pele. O mais jovem, um orgulhoso guerreiro de Hespéria usando armadura dourada e portando um escudo vermelho, deu uma cusparada amarela e enxugou o rosto brilhante de suor com um trapo, e então bebeu fartamente do cantil antes de entregá-la ao companheiro.

O outro homem, que usava uma túnica cintada cinzenta com capuz e levava uma mochila às costas, trocou o cajado de mão para aceitar o cantil e bebeu. Seu cinto era gravado com padrões estranhos cor de sangue seco. Ele era magro o suficiente para sacudir ao vento, e sua longa barba e cabelos brancos e rebeldes o fazia parecer um pouco louco, mas havia uma força nele que se tornava mais aparente à medida que viajavam. Ele caminhava num passo constante, não importava a hora do dia ou da noite, e o jovem frequentemente tinha que se esforçar para acompanhá-lo.

O ancião apontou para a direita, onde se podia ver uma leve depressão na areia que seguia em linha por uns 6 metros antes de desaparecer.

— Um mangual irrompeu dali para se alimentar — indicou ele. — Eles se tornam mais agressivos com o cair da noite. Precisamos tomar muito cuidado.

O final do caminho estava salpicado de pontos vermelho-escuros. Sangue. O jovem já ouvira falar dos manguais, feras terríveis como dragões com dentes monstruosos e garras que podiam dilacerar um homem. Ele podia lutar com sua espada contra qualquer criatura de carne; eram as criaturas do além as mais ameaçadoras, ele pensou, embora jamais tivesse encontrado uma. Mas ao olhar para o velho, sabendo ligeiramente sobre as cicatrizes que ele carregava, o jovem pensou que seu companheiro era mais do que capaz de enfrentar tais criaturas.

Depois da pausa eles seguiram, e, no topo da elevação seguinte, encontraram o que procuravam.
Ao longe, colunas gêmeas se erguiam da areia como dentes imperfeitos, seus cumes terminando bruscamente como se partidos por alguma coisa não humana. Deckard Cain achou que seria bem possível se aquela fosse de fato a entrada para o repositório dos Vizjerei. Ele mal podia imaginar os horrores que poderiam ter visitado o local no passado à procura de sangue de feiticeiro.

Os dois já estavam viajando havia dias, e tinham deixado as mulas na última cidade para cumprir a pé a última etapa da jornada. Mulas seriam pouco úteis nas dunas de areia incerta. O local que Cain e seu companheiro procuravam era bastante remoto; ele não tinha dúvidas de que as ruínas teriam permanecido escondidas por muitos mais anos se o jovem guerreiro que o acompanhava não tivesse lhe trazido os obscuros textos dos Zakarum, agora guardados na mochila de Deckard. Os Antigos Repositórios dos Vizjerei em Caldeum eram bem maiores e mais conhecidos entre os magos, mas aquele que procuravam, se existisse realmente, poderia ser ainda mais importante.

Tinha sido uma longa jornada. Após a derrota de Baal no Monte Arreat e a destruição da Pedra do Mundo, Deckard Cain não conseguira convencer seus companheiros de viagem de que a ameaça imediata a Santuário ainda não acabara. Bem longe disso, na verdade, se tudo o que ele lera e compreendera nos pergaminhos Horádricos fosse verdade. O próprio arcanjo Tyrael o avisara disso, antes de se perder. Cain sentira uma sutil mudança no mundo ecoando as profecias, uma alteração no delicado equilíbrio de séculos entre o Paraíso Celestial e o Inferno Ardente. A perda da Pedra do Mundo tinha sido devastadora, e deixara Santuário aberto e vulnerável.

Para piorar as coisas, Cain voltara a sonhar com a infância e as histórias da mãe, fazendo-o despertar encharcado de suor frio quase todas as noites. Ele lutava contra infindáveis exércitos das trevas sem nada para protegê-lo, ou sentava-se encolhido e alquebrado em uma jaula pendurada em um poste enquanto criaturas monstruosas o provocavam. Reviveu novamente eventos ainda piores:

fantasmas do passado que ele acreditava enterrados para sempre. O velho erudito não tinha sonhos assim desde a queda de Tristram. A culpa que sentia em relação aos acontecimentos o consumia; egoísta como ele era na época, tinha chegado tarde demais para deter a invasão demoníaca do próprio lar e para mudar o que acontecera no Monte Arreat.

Os companheiros de Cain insistiam em celebrar a vitória, em retornar aos entes queridos e retomar suas vidas esfaceladas, e ele não podia culpá-los por isso. No entanto, ninguém aguardava o seu retorno, e com Tristram destruída ele não tinha para onde ir. Assim, ele partiu em busca das peças que revelariam o padrão oculto dos eventos. Se a invasão fosse de fato iminente, ele precisaria de ajuda: os Horadrim tinham sido formados para combater o mal, mas estavam desaparecidos havia muito tempo. A voz da mãe ecoava em seus ouvidos, vinda do passado: Jered é do seu sangue, e você... você é o último de uma orgulhosa linhagem de heróis.

Akarat começou a descer a encosta de areia em direção às colunas, mas Cain o deteve pelo braço. O paladino vibrava, cheio da energia e impetuosidade próprias da juventude que nublavam os sentidos aguçados que o teriam aconselhado cautela. Mas Cain percebera, como um odor azedo trazido pelo vento.

O cheiro do perigo. Akarat desembainhou a espada, ansiosos para atacar o que quer que estivesse esperando por ele.

— Aqui estamos expostos — afirmou o paladino. — É melhor irmos rápido. Eu te protejo dos manguais e das vespas. Além disso, pode ser até que não haja nada lá.

— É melhor observarmos um pouco mais. Os textos falam de um feitiço que esconde o repositório. Não era para estarmos vendo essas colunas. Algo enfraqueceu o feitiço.

Deckard não completou a linha de pensamento: Se houver artefatos valiosos escondidos aqui, pode haver também forças poderosas as guardando. Ele se ajoelhou na areia quente e vasculhou a mochila em busca de algo. O jovem que o acompanhava fazia Deckard se recordar de outro herói que conhecera há muitos anos, um velho amigo que descera até as catacumbas infernais tentando salvar Tristram. Ele pagara caro por seu excesso de confiança, bem como toda Santuário, e Cain não pudera salvá-lo.

Se eu estiver certo, será você quem precisará de proteção, pensou. O ancião alcançou o objeto, parecido com uma luneta de lente âmbar, e o ergueu à luz. O sol caía no horizonte, tingindo o ar com uma coloração amarelada intensa. A escuridão chegaria em pouco mais de uma hora, e o melhor a fazer seria montar acampamento agora e explorar as ruínas ao amanhecer. Mas Akarat estava certo: ali eles estariam expostos, e nenhum deles queria enfrentar o que poderia estar à espera sob a areia quando a escuridão dominasse.

Deckard se levantou, tentando ignorar a dor nas costas e o latejar incômodo nos joelhos, lembranças constantes da sua velhice. Como isso acontecera? Parecia que apenas instantes atrás ele era um garoto brincando de pega-pega pelos campos, desviando dos montes de estrume de vaca escondidos pela grama e roubando ovos do galinheiro de Grosgrove. Ah, quão fugaz era a vida, escoando pelos dedos como areia, esvaindo-se antes que se pudesse segurá-la...

As incertezas de Cain retornaram. Ele passara a maior parte da vida no egoísmo e na negação, vivendo entre os livros e ignorando o próprio passado. Esperara cinquenta anos para abraçar seu destino, e no processo ajudara a destruir tudo o que mais amava. Será que ele poderia mesmo se considerar um Horadrim?

Ele não era um herói, apesar do que a mãe sempre lhe dissera. Pensar que tanta coisa repousava em seus velhos ombros frágeis o aterrorizava. Algo terrível se aproximava, algo que faria o ataque anterior parecer uma brincadeira de criança. Ninguém com quem ele falara da invasão demoníaca acreditara em suas palavras, exceto Akarat; todos pensaram que ele era um velho tolo e caduco, na melhor das hipóteses — e perigoso, na pior. As pessoas de Santuário continuaram com suas vidas e raramente pressentiam a intrusão dos demônios no mundo. A vida era difícil, porém normal.

Eles não tinham visto o que ele vira, nem sonhado o que ele sonhara. Ou pensariam de outra forma.
O paladino grunhiu. Ele embainhara a espada novamente, mas mudava o peso do corpo de um pé para o outro nervosamente. Em Hespéria, o jovem sempre se mostrara interessado pelas histórias de Cain, insistindo que ficassem acordados conversando até altas horas da noite; mas agora, em campo aberto e perto da batalha, ele queria ação. Fora batizado em homenagem ao fundador da Catedral Zakarum, e parecia um nome adequado para ele. Embora fosse jovem e teimoso, ele era um crente verdadeiro e fervoroso.

Cain sussurrou algumas palavras, um breve encantamento para ativar o poder do artefato, e o passou ao companheiro.

— Olhe para as ruínas com a lente. Rápido, antes que suma. O jovem paladino levou o aparato aos olhos, e o súbito arquejo de espanto bastou para Cain perceber que o artefato estava funcionando.

— Pela Luz... — murmurou o jovem. Ele abaixou as lentes, encarando as ruínas, e então as ergueu novamente. — Incrível. — Ele devolveu a luneta a Cain, com os olhos arregalados de espanto.

O ancião espiou através da luneta. A cor das lentes dava à cena uma coloração alaranjada, como se fogo queimasse na periferia da visão. Os restos de uma estrutura enorme e seu terreno circundante se espraiavam abaixo deles além do ponto em que as duas colunas marcavam a entrada.

Mais colunas em variados estágios de decomposição se postavam em linhas gêmeas até chegar ao que já fora o portão frontal de um templo. As muralhas rachadas se erguiam até o ponto onde tinham sido demolidas por alguma forte explosão anos atrás. Enormes blocos de pedra, lascados e erodidos pela areia, jaziam semienterrados no lugar em que tinham caído. Cain analisou cuidadosamente a cena e então baixou a luneta. Mais uma vez, a olho nu, apenas as duas colunas apareciam. O feitiço que protegera as ruínas durara séculos, mas agora enfraquecia. A pergunta era: por quê?

Não havia como deter Akarat, porém. O rapaz já estava alguns metros adiantado, descendo a encosta tão rapidamente quanto a armadura permitia. Olhou de relance para Cain, e o brilho cálido do sol roçou sua face empolgada uma última vez à medida que ele mergulhava nas sombras.

— Então vamos! — gritou ele. — Está bem na nossa frente! Você está esperando um convite formal?

Parte II

A câmara secreta O ar era mais frio perto das ruínas. O feitiço de revelação da luneta já se dissipara quando eles chegaram às enormes colunas, mas os dois viajantes já não precisavam dele ao atravessar a entrada.

As duas colunas projetavam sombras mais densas, como linhas negras desenhadas na poeira. Além das sombras, o véu pouco a pouco se erguia, e as ruínas do repositório secreto pairavam feito montanhas ao redor deles, aparecendo subitamente por entre a névoa. Pedras quebradas se projetavam da areia, polidas pelo vento em certos pontos. Antigas runas entalhadas cobriam os blocos maiores, sinal de que se encontravam em um local de grande poder dos Vizjerei. Cain sentiu o coração bater mais forte e as palmas das mãos se umedeceram. Ele podia ouvir um rumor surdo e contínuo sob os pés, bem no fundo da terra.

Ou talvez, pensou ele, fosse outra coisa. Ali havia escuridão. Embora o sol ainda tocasse o topo das rochas, ele não as aquecia. Até o paladino podia sentir agora, e seus passos vacilaram enquanto avançavam ruína adentro. Diante deles jaziam os restos do templo: a entrada coberta de detritos, o que restara do telhado ameaçando desabar. Madeiras grossas apontavam para o céu feito as costelas de alguma fera gigantesca. Era ali que os textos antigos teriam sido guardados, se é que já tinham existido. Mas lá dentro seria perigoso e possivelmente instável.

Um som como o farfalhar de folhas chegou aos ouvidos do paladino. Akarat parou e sacou a espada.

— Você ouviu isso? — perguntou, baixinho.

Cain assentiu, aproximando-se do jovem e parando ao lado dele.

— Pode haver alguma coisa aqui embaixo conosco, no final das contas.

— Tipo... o quê? Algum animal?

— Talvez — respondeu Cain. Ele podia ver que o paladino estava assustado, mas empolgado, e esforçando-se para não deixar transparecer. Histórias sobre ataques demoníacos eram uma coisa, mas encarar de verdade algo que a maior parte das pessoas considerava lenda era outra. Cain sabia bem disso.

Os sons os rodeavam, bem baixos, quase sumindo e então voltando, como ondas na praia ou o murmúrio abafado de uma multidão. Cain ergueu o cajado numa posição de proteção, sentindo uma curiosa sensação de ardência esquentar-lhe a pele enquanto ele seguia pelo caminho irregular, com Akarat em seu encalço.

— Tape os ouvidos — disse Cain. — Finja-se de surdo. Se ouvir vozes, não dê atenção.

— Não estou entendendo.

— Se houver algo impuro aqui, tentará corromper você, encontrar as suas fraquezas. Ignore tudo o que for dito. O que quer que seja, juro que não será para seu proveito.

Deckard chegou à beira das rochas tombadas na entrada do templo e olhou ao redor, procurando uma maneira de entrar. Havia um espaço grande o bastante para um homem. As trevas dominavam a área além da estreita passagem da altura dos seus ombros. Cain remexeu a mochila outra vez e pegou um livro de feitiços semidestruído. Procurou pelas palavras certas nas páginas quebradiças e, ao entoá-las, a esfera de vidro na ponta do cajado ganhou vida, iluminando-se de súbito e banhando o espaço em volta com uma luz azul.

Além do alcance do vento, no ponto onde a areia começara a sumir, havia um fraco rastro de pegadas. Um homem, ou algo que caminhava como um, passara por esse local não havia muito tempo.

Ele guardou o livro e voltou-se para o paladino, que olhava dele para o cajado brilhante e de volta para ele, com a boca aberta de pasmo.

— Magia? Magia mesmo, de verdade?

— É apenas um feitiço simples, nada mais. Assim como aquela luneta: o poder está nos objetos, não em mim. Eu simplesmente possuo o conhecimento para liberar esse poder. Este é um local de feitiçaria, e foi escolhido por causa do poder sob o chão. Os feitiços ficam mais fortes em lugares assim.

— Você é mesmo o último Horadrim?

Cain pensou em como responder. Finalmente, disse: — Tudo que aprendi foi o que li nos livros. Trata-se de uma ordem esquecida. Se ainda houvesse membros vivos, então eles certamente estariam mais bem preparados que eu, e já se teriam revelado a esta altura.

— Mas se você for o último, o que isso significa?

— Que tenho de fazer o que for possível para deter aquilo que está vindo para Santuário. —

Cain deu de ombros. — E orar para que não seja muito tarde. Que o Céu nos ajude, pensou o idoso, mas não falou nada. Akarat olhou para a esquerda e para a direita, como se esperasse que algo o atacasse.

— Ainda há muita coisa no mundo pra se ver — afirmou o paladino. Naquele momento, ele parecia um garoto que tinha visto algo que não deveria e tentava compreender o que se passava.
Não notara as pegadas no chão. Cain pousou a mão no ombro do jovem.

— Você já esteve em uma batalha?

— Eu... lutei muitas vezes. Patrulhei a cidade, e já provei minha habilidade na arena...

— Não falo de patrulhas ou de arenas — interrompeu-o Cain, gentilmente —, mas sim de uma luta contra alguém que perfuraria seu coração na primeira oportunidade. Ou pior. Akarat balançou a cabeça, e a ansiedade traiu seu esforço de parecer confiante.

— Não houve muitas oportunidades desde que me tornei adulto.

— Eu esqueci. A batalha no Monte Arreat ocorreu há muito. Você não teria mais que...

— Dez anos — respondeu Akarat, e seus olhos luziram. — Lembro de ouvir as histórias dos homens que retornaram. Eu queria ser como eles.

— Não há vergonha nisso — concordou Cain, e sorriu. — Desde então o mundo tem estado mais calmo, ao menos na aparência. Mas ele logo lhe dará uma oportunidade. Agora, eu quero que você guarde esta entrada. — Quando o jovem começou a protestar, ele balançou a cabeça. — Eu já estou velho, e não sou muito forte. Não consigo lutar com uma espada. Mas não estou usando armadura, e sou esguio o suficiente para passar por lugares estreitos. Se eu tiver tempo, posso encontrar alguma coisa do outro lado capaz de nos auxiliar. Você me ajudará muito mais ficando aqui e se certificando de que nada me surpreenda pelas costas.

Akarat postou-se firme e segurou o cabo da espada com as duas mãos.

— Não vou te decepcionar — afirmou.

Cain sorriu, mas assim que se voltou às trevas, o sorriso esvaeceu-se. Novamente recordou o herói que ele conhecera em Tristram, o filho mais velho do rei Leoric, depois conhecido como Errante Sombrio. Ele dissera o mesmo antes de descer pelas profundas cavernas amaldiçoadas sob a catedral. Cain tinha sido tutor do rapaz, e o tinha amado, na medida em que era capaz naquela época.

O ancião baixou a cabeça para entrar pela passagem improvisada. Dentro do espaço estreito, a altura disponível o obrigava a avançar rastejando, com os ombros encolhidos e os joelhos dobrados, virando-se de lado e raspando na rocha para passar por um trecho mais estreito. A dor, seu constante e invisível inimigo, fisgou-lhe as costas novamente.

Talvez eu não devesse ter vindo mesmo, pensou ele. Talvez isso seja realmente trabalho para um homem mais jovem. Felizmente, alguns metros mais adiante, a passagem se abria, desimpedida. Deckard ergueu o cajado luminoso para ver mais claramente. Degraus de pedra rudemente entalhada desciam terra adentro. Estavam em bom estado de conservação; os níveis mais baixos do templo aparentemente tinham sobrevivido ao colapso do prédio. Mais pegadas marcavam a poeira, subindo e descendo os degraus. Era impossível saber a quanto tempo tinham sido feitas.

O cheiro de mofo e poeira subiu até Cain como se saído de uma tumba aberta depois de muitos séculos. Ele ouviu o suave farfalhar outra vez, mas ao olhar para as trevas lá embaixo, não pôde discernir nada. Deckard Cain desceu lentamente, e o ar começou a esfriar conforme ele prosseguia. A
escadaria terminava em um chão de pedra. A luz do cajado revelou uma grande câmara apoiada em
enormes vigas de madeira e tomada por espessas teias de aranha. Havia runas de poder e alerta
gravadas nas vigas. Cain as leu com apreensão crescente. Aquelas eram as marcas dos seguidores de
Bartuc, um mago Vizjerei que existira havia muitos séculos e fora corrompido, tomado por uma sede de sangue depois de evocar demônios para servi-lo. Suas batalhas contra o irmão, Horazon,

foram o clímax das antigas Guerras dos Clãs dos Magos e levaram à morte de milhares de pessoas.
Se o local fosse um repositório do exército de Bartuc, quaisquer artefatos Vizjerei que ele encontrasse ali estariam imbuídos em magia demoníaca. Seriam suspeitos e possivelmente muito perigosos.

Teriam eles cometido um terrível engano, indo até ali?

Cain tremeu quando um pouco de areia caiu à sua frente e algo grande e escuro se arrastou rapidamente por uma viga então desapareceu. Era grande demais para ser uma aranha, e rato nenhum conseguiria se prender de lado na viga por tanto tempo assim.

Melhor não olhar muito pra essas coisas...
No centro do aposento, algo cintilava à luz. A poeira fora afastada ali, revelando um padrão intricado e circular de runas gravado na rocha. Um portal. Para onde levaria, Cain não fazia ideia.

No centro, uma joia cor de sangue. Quem quer que tivesse tentado removê-la, marcando o chão com
ranhuras profundas, havia desistido. Cain se ajoelhou perto da gema, estudando as runas com cuidado. O que leu fez seu coração disparar. O erudito pronunciou várias palavras de poder antigas
para soltar a joia, então a guardou na mochila.

Deckard avançou pelo aposento, seguindo as pegadas até uma alcova na parede oposta. Tábuas podres presas em apoios, os últimos restos de uma antiga biblioteca. O lugar tinha sido uma câmara ritual havia muitos séculos, usada para evocar coisas do além. Um portal para o próprio Inferno Ardente, talvez. As prateleiras estavam vazias. Cain viu uma mancha amarela sob uma tábua e se agachou, pegando um pedaço de pergaminho enrolado e manchado de bolor.

Alguma coisa se moveu nas sombras à direita. O ancião se virou, erguendo a luz. Por um momento, parecia que as sombras estavam vivas, se adensando e volteando feito tinta na água. Ao mesmo tempo, uma voz, como o gemido distante do vento, pairou pela sala vazia, e Cain sentiu os cabelos da nuca se arrepiando.

— Deckaaaaarrdddd Caiiinnnn...

Deckard teve uma lembrança estranha, de uma noite muitos anos atrás, quando era apenas um garoto. Uma voz sussurrada, chamando-o da mesma forma. O velho recuou, remexendo a mochila com uma das mãos e erguendo o cajado iluminado com a outra, devassando as trevas. Ele já duvidava de si mesmo: teria sido só o vento se movendo entre os restos quebrados do edifício acima dele, uma ilusão da mente após um dia cansativo ao sol?

Mas a voz retornou; era como o som de ossos raspando o túmulo.

— Seus fantasmas são muitos, velho homem, e eles têm estado ocupados.

O som de metal arranhando pedra pareceu vir de todos os lugares ao mesmo tempo. Mais uma vez, um borrão de fumaça negra se condensou e dissipou, apenas para reaparecer em outra parte: uma forma carregando uma espada, a forma de um homem, mas com olhos que brilhavam rubros com o fogo do Inferno.

Cain sabia o que era aquilo, arrancado das profundezas da sua mente para ser usado contra ele: a imagem do Errante Sombrio, conjurada para enfraquecer sua força de vontade. A forma de fumaça tremia e mudava, tornando-se então duas formas humanas indistintas, uma mais alta e claramente feminina, a outra pequena e delicada. O corpo de Cain sacudiu de espanto quando uma lembrança antiga e familiar tentou irromper à superfície da memória. Ele fechou os olhos para se proteger das trevas enquanto a boca do desespero se abria a seus pés, ameaçando engoli-lo. Não escute.

— Vem vindo uma tempestade — disse uma voz vinda da escadaria. — Precisamos procurar abrigo.

O que quer que espreitasse na câmara sibilou de prazer quando Akarat pisou no chão de pedra, piscando diante à luz e parecendo confuso.

— Volte! — gritou Cain, e algo se desprendeu das sombras e voou pela câmara na direção do jovem paladino.

Mas Akarat investiu adiante estupidamente, desembainhando a espada e partindo a sombra em duas com um golpe. A espada atingiu o chão de pedra e provocou faíscas. Ele a ergueu e deu um golpe horizontal com a lâmina pesada, sem efeito. A escuridão fluía como fumaça ao redor do jovem paladino, coleando em volta das pernas e subindo pelo corpo enquanto Cain se ajoelhava na poeira e deixava o cajado de lado.

O paladino começou a gritar. Os pergaminhos de Cain se empilhavam sobre a pedra. Onde está? Ele remexeu os papéis até encontrar o que procurava, e então, desenrolando o velino delicado, gritou as palavras de poder com toda a força que pôde reunir.

O demônio gritou de raiva, um som inumano cortado ao meio ao mesmo tempo que o pergaminho virou pó nas mãos de Cain. A câmara ficou mais iluminada, brilhando num tom esmeralda, e uma bolha encantada se formou ao redor deles. Do lado de fora da bolha, a sombra se retorcia, pairando ao redor da barreira que a impedia de se aproximar. Cain viu de relance uma forma de pernas com articulações múltiplas, um borrão de aparência insectoide que coalescia e se esvanecia repetidamente.

Akarat se aproximou de Cain, recolhendo os pergaminhos do ancião e ajudando-o a se erguer, então olhou para as trevas espasmódicas que batiam contra a bolha esmeralda. O jovem ofegava, coberto de suor.

— Como... como você fez isso?

— Um feitiço dos Ammuit. É uma ilusão, e não nos protegerá por muito tempo.

— Então você é mesmo um feiticeiro!

— Eu sou apenas um erudito que aprendeu a usar aquilo que outros me deixaram.

Akarat se voltou para a coisa que os tinha atacado.

— O que é aquilo?

— Um servo de um Mal Inferior, mandado para proteger o que quer que essas câmaras contenham. Não escute o que ele diz, ou irá pervertê-lo por dentro até você sucumbir.

— Eu... eu vi coisas. Coisas terríveis. — O paladino sacudiu a cabeça como se para afastar as lembranças. — Sobre você... e sobre mim. — Ele se voltou para o velho, e seus olhos estavam perturbados.

— Filho, não acredite nelas. Precisamos sair deste lugar, e rápido.

O rosto do jovem ficou sombrio, então ele disse: — Eu... aquela coisa é má. Precisamos matá-la!

— Não é de carne e osso...

— Eu posso derrotá-la. Eu tenho que tentar, por tudo o que é mais sagrado. A fé dos Zakarum nos ensina a resistir a todo o mal, a combatê-lo até o fim. Criaturas como essa corromperam o Alto Conselho, assassinaram Khalim e levaram as trevas ao nosso templo! Por causa deles os Zakarum estão em frangalhos.

O suor colava o cabelo de Akarat à testa; ele ergueu a arma e se voltou para o espectro.

— Os arcanjos me apoiarão, eu sei!

Ele já está perdido. O coração de Cain pesou, e ele sentiu um frio profundo nos ossos. Estendeu o braço para tocar o do paladino e disse: — Há maneiras de combater demônios como esse, mas não é com a espada...

A sombra congelou em um rosto enegrecido com órbitas vazias e boca arregalada, pairando além do alcance. Akarat arquejou, e seu corpo retesou-se quando ele viu o rosto se transformar numa imagem dele próprio, sua expressão demonstrando choque e terror quando uma grande ferida se abriu na garganta do clone espectro. A cabeça tombou do pescoço, e fumaça se esvaía dele como sangue negro.

Com um grito estrangulado, o jovem paladino pulou na direção da coisa inquieta fora da bolha. Um clarão iluminou a câmara quando ele atravessou a barreira protetora e Cain ergueu os braços para se proteger, caindo para trás, mas não antes de ver a espada do paladino atingindo o vazio.

A luz estourou como um estalar de um raio; Akarat gritou e subitamente se calou. Parecia que o mundo tinha parado por um instante, recuando e arremessando Cain de volta para dias que ele não queria lembrar, para sonhos preenchidos com os gritos de uma criança perdida e só. Com o feitiço quebrado, as trevas agora enchiam o aposento; o ancião ergueu novamente o cajado e aos poucos se firmou de pé. O orbe perdera um pouco do brilho, como se as sombras tivessem começado a absorver a luz que ele emitia.

O brilho azul revelou o paladino ainda de pé, de costas para Cain, com o corpo encurvado. Ele derrubara a espada no chão e seus braços pendiam imóveis.

— Akarat — chamou Cain. Ele deu um passo adiante, acossado pelo medo. O jovem não respondeu; apenas seus ombros se moviam levemente para cima e para baixo, indicando que ainda respirava.

Precisamos sair daqui. Eu estava errado em vir. Uma corrente de ar gélido acariciou o rosto de Cain, trazendo consigo o fedor de carniça da morte. Quando ele tocou o braço do paladino, um frio percorreu seus dedos.

O jovem se voltou em resposta ao toque, mas a face que saudou Cain já não era de Akarat. Pele dura feito couro se esticava sobre um cenho e faces inchados, e os lábios rachados sangravam. Os olhos que pertenceram a Akarat agora fitavam Cain com um brilho de ódio em meio a bolsões inchados. Ele pensou em coisas frias e mortas, apodrecendo em uma cova esquecida, e soube que não deveria olhar; tinha que virar-se agora e correr, ou as trevas penetrariam sua própria alma e enegreceriam seu sangue.

— Estávamos esperando você, Deckaaaaard Cainnnn.

— Deixem-no ir.

— Preferimos que não. — A coisa sorriu, expondo longos dentes afiados. — Há tanto a fazer para nos prepararmos para a chegada.

Ele tentou pensar em alguma coisa na mochila que pudesse ajudá-lo, mas ele não tinha um feitiço para aquilo, nenhum artefato mágico que pudesse expulsar o demônio. Sem feitiços ou artefatos ele estava perdido; não tinha magia própria.

— Último dos Horadrim — sibilou a coisa, zombando dele. — Você não é nada. E está errado. Olhe ao redor: as pegadas, os pergaminhos ausentes. Outros da sua raça já vieram aqui e falharam. Por que seria diferente com você?

Outros? Ele olhou para as pegadas desordenadas na câmara, algumas deixadas por ele e Akarat, mas muitas desconhecidas. Um leve sentimento de esperança o elevou do desespero. Mas ele sabia ser impossível, sabia em seu coração que ele era o último.

Nada que a criatura dizia era confiável. O demônio mente. Não preste atenção.

Você é o último de uma orgulhosa linhagem de heróis.

— Akarat — disse Cain, com firmeza. — Estou falando com o homem dentro da casca. Resista, filho. Lute contra a coisa que o dominou.

— Nosso mestre se aproxima — respondeu a criatura, lambendo os lábios sangrentos. Sua respiração saía áspera do peito de Akarat e cheirava como mil cadáveres podres. — O verdadeiro senhor do Inferno Ardente. Você logo será dele, e sua morte será lenta e dolorosa. Talvez o transforme em escravo para sempre. Nós conhecemos muitos da sua raça que agora estão com ele.

— O demônio sorriu. — Muitos que você conhece e ama.

— Akarat. Escute-me. Não o deixe vencer. Você está no controle. Você tem poder pra isso!

A pele do rosto do demônio tremeu e ele sibilou como se sentisse dor. Cain ergueu o cajado entre eles e a criatura se afastou da luz. Gritou: — Deixem-no ir!

A criatura chiou outra vez e por um momento seu rosto voltou a ser o de Akarat; o jovem paladino piscou confusamente e no instante seguinte suas feições se contorceram horrivelmente. Ele se fora.

— O rapaz não é forte o bastante. E nem você. — O demônio deu um passo à frente e seu pé tocou a ponta da espada que Akarat derrubara. Abaixou-se para pegar a arma, olhando a lâmina que resplandecia à luz azul. Então olhou novamente para Cain, voltando a sorrir. — Que tal usarmos
esta? Cortes pequenos, quem sabe. Mil cortes pequenos.

Cain cambaleou, vasculhando a mochila novamente com uma só mão, os dedos trêmulos passando pelos textos à procura de algo que pudesse ajudá-lo. Sua outra mão doía ao apertar o cajado, a única coisa que parecia se postar entre ele e a morte lenta e dolorosa. Akarat estava perdido, ele sabia disso agora, e enquanto o demônio enraivecido se aproximava, Cain já lamentava a perda do homem que o paladino teria sido um dia.

Se ele soubesse que eu não tenho poder, que este cajado não é mágico sem um feitiço que o encante...
Imediatamente ele se arrependeu de ter pensado isso, mas era tarde demais. O sorriso do demônio se ampliou, e ele deu outro passo à frente, dizendo: — Então você não é um Horadrim de verdade, afinal? É claro que não. Suas fraquezas revelam a verdade.

Cain cambaleou para trás na câmara antiga até chegar ao seu centro.

— Afaste-se — gritou ele, brandindo o cajado. A luz azul contida no globo piscou e começou a enfraquecer. O sorriso da criatura se abriu ainda mais, como se o rosto retorcido de Akarat fosse engolir a si mesmo em um buraco negro que consumiria toda a luz e bondade do mundo.

— Você sabe o que iniciou? O Céu arderá em chamas, Horadrim. O flagelo de Diablo e seus irmãos parecerão dias de festa comparados a isto. Nosso mestre é todo-poderoso, e derrubará as muralhas de Santuário até o chão tremer e rachar. Caldeum queimará, os arcanjos do Paraíso Celestial cairão e Santuário inteiro será nosso. E você chegará tarde demais para impedir.

“Patético. Seu salvador está tão perto, escondido entre milhares de desconhecidos e a menos de três dias de jornada daqui. E, no entanto você nada sabe e nada vê.”

Cain caiu de joelhos. Sua mão tocara o que ele procurava, e ele fechou o punho ao redor da joia negra que arrancara do círculo gravado com runas no chão.

— Onde estão seus anjos agora, velho? Onde estão seus heróis atrás dos quais você se escondia quando eles partiam para a batalha? Isso é tudo o que você tem? Este rapaz que você nos deu para mascarar seu orgulho e egoísmo? Você é inútil. Como seu antepassado.

O demônio ergueu a espada com as duas mãos e se postou sobre ele, gargalhando. Cain se afastou, arrastando-se de costas e deixando cair o cajado; ele viu o globo brilhante rolar pelo chão até parar alguns metros adiante.

— Mudamos de ideia. Não mil cortes pequenos, mas apenas um, separando a cabeça dos ombros.

O demônio virou a cabeça como se escutasse algo. O que quer que ele tivesse ouvido o fez encolher-se como um cão espancado. Ao responder, ele falou não com Cain, mas com alguma coisa escondida dos olhos mortais, e o som da sua voz mudara para um ganido patético.

— Nós temos sede. Por que ainda não é hora?

Então o demônio viu a mão de Cain segurando a pedra. O ancião se moveu como se para escondê-la, mas o demônio atacou com a espada, mirando o pulso de Cain, que soltou a pedra rapidamente para afastar a mão do golpe. A espada errou sua mão por centímetros.

— Você achou que poderia nos banir com isto? — Ele apanhou a joia e a ergueu no ar. A gema rubra cintilava à luz azul. O demônio deu mais um passo adiante. — Ela não tem poder sem as runas e a magia para ativá-la, velho.

— Eu... eu ordeno que vocês abandonem esse corpo...

— Silêncio! — O demônio ergueu a espada novamente, a joia ainda na outra mão. Cain olhou para o piso de pedra. Só mais um passo...

O demônio aproximou-se mais, com uma expressão de ódio gravada em suas feições, sem notar que caíra na armadilha de Cain. O ancião recitou as palavras de poder, lidas das runas que ele gravara na memória, e sua voz saiu subitamente limpa e clara. O demônio olhou para baixo com uma expressão de evidente surpresa em seu rosto desprezível, e o círculo de runas começou a pulsar com uma luz forte; a joia em sua mão ganhou vida.

O demônio uivou de raiva, e junto a ela parecia haver uma expressão de respeito relutante.

— Trapaça!

Mas Cain não se sentiu satisfeito com aquilo, sabendo que havia sentenciado Akarat à morte. O portal que os seguidores de Bartuc usavam para evocar demônios do Inferno Ardente se abriu com uma explosão de luz vermelha. O demônio guinchou e a joia em sua mão refletia a cor brilhante; a espada caiu no chão e a forma de Akarat desapareceu, esvanecendo como o borrão que o sol deixa nos olhos dos homens quando eles piscam perdidos na cegueira.

— Volta pro Inferno — disse Cain para o vazio quando o portal se fechou. Seu corpo inteiro doía.

Akarat, meu filho, perdoe-me.
Ele se pôs lentamente de pé e recuperou seu cajado. O brilho azul estava quase apagado agora. O demônio se fora, mas ele perdera o companheiro e eles não tinham encontrado nada. Akarat perecera em vão.

Deckard Cain subiu os degraus de pedra sozinho, se arrastando pela passagem estreita até chegar do lado de fora, onde uma tempestade recobria as ruínas, ameaçando inundar toda a área. Ele levava de volta a espada de Akarat e um coração pesado. Falhara outra vez em impedir a morte de um ente querido.

Nuvens negras pairavam no alto, e o vento repuxava sua túnica. A luz esvanecia rapidamente.
Preciso me apressar. Talvez ainda fosse possível salvar alguma coisa dessa jornada, e ele faria tudo em seu poder para honrar a memória de Akarat e achar essa coisa. Cain começou a dar a volta pelo edifício principal arruinado, seguindo mais pegadas. Nos fundos, entre as colunas quebradas e pedaços de rocha, ele encontrou uma trilha para o que devia ter sido um jardim muitos anos atrás. No centro de um espaço aberto jaziam os restos de uma fogueira, assim como bagagens abandonadas e três cajados quebrados.

A pulsação de Cain se acelerou. O que quer que tivesse acontecido aos que tinham vindo antes dele acontecera ali; não era possível saber se eles tinham sobrevivido ou morrido, mas claramente haviam trazido tudo o que encontraram na câmara subterrânea para cima e erguido acampamento antes de serem interrompidos.

Algo farfalhou no vento, meio enterrado em um monte de areia. Deckard foi até lá e encontrou um livro de feitiços. Vizjerei. Magia demoníaca, obra de Bartuc. Velho o suficiente para ter vindo do templo. Havia algo importante ali, afinal.

Ele vasculhou a areia à procura de mais livros. Alguns passos além, perto de um padrão incompleto desenhado na areia, ele encontrou outro, um livro de profecias Horádricas.
Deckard ficou em choque por um instante. Textos Horádricos naquele lugar? Como? Páginas haviam sido arrancadas, pedaços faltavam e as palavras eram quase ilegíveis. Cain protegeu o livro com cuidado e reverência, como fazia com todos os textos. Eram preciosos para ele, todos eram como seus filhos. Mas este era mais importante que o restante.

Um brasão apareceu, gravado em fogo na primeira página. A marca de uma grande linhagem e prova do imenso valor do texto. O próprio Tal Rasha parecia tê-lo escrito, um dos primeiros
Horadrim designado pelo arcanjo Tyrael para caçar e aprisionar os Males Supremos. Cain folheou o livro, sentindo o coração trovejando no peito. O que ainda era legível falava de outra guerra entre a luz e as trevas, uma que faria as outras parecerem eventos sem importância. E o Paraíso Celestial choverá sobre Santuário, e um falso líder se erguerá das cinzas... A tumba de Al Cut será revelada e os mortos devastarão a humanidade...

Um ruído fez com que ele se voltasse. Uma vespa-de-areia voava a 3 metros dali. Seu abdômen pesado e o ferrão pairavam dependurados, e ela zunia voejando pela área perto das bagagens abandonadas. Cain permaneceu parado até que ela se afastasse, então foi ver o que atraíra o inseto.

Dentro das bagagens ele encontrou comida podre, que atraíra a vespa, e outros textos. Deckard pousou os escritos gentilmente em uma pilha no chão e investigou as páginas uma a uma enquanto o céu rugia acima de sua cabeça. Os textos eram uma mistura peculiar de escritos Vizjerei,

Zakarum e Horádricos, e ele não imaginava como alguém poderia ter juntado essa coleção — ou por que a teria abandonado ali.

Cain leu os documentos, sentindo uma torrente familiar de empolgação se intensificando enquanto ele passava cada uma das frágeis páginas. Ao erguer o segundo texto do chão, algo pareceu diferente ao toque. O escrito era mais recente: uma cópia de um livro de feitiços, produzida há menos de um ano, ao que parecia. O trabalho artesanal era bom, as páginas recém-encadernadas e bem transcritas. E também parecia dos Horadrim.

(Olhe ao redor, as pegadas, os pergaminhos faltando. Outros da sua raça já vieram aqui e falharam...) A mente de Deckard Cain se acelerou. Havia muitos textos Horádricos falsos, espalhados por Santuário ao longo dos anos, mas este parecia mais autêntico que os outros que o próprio Cain já vira. Ele o estudou mais de perto, prestando atenção no estilo da prosa, na musicalidade da linguagem. Notou a energia ali guardada, e como o livro parecia vibrar numa

frequência pouco acima da percepção humana normal. Quanto mais ele lia, mais se convencia de que aquela era uma reprodução fiel de um texto original. Encontrá-la com outros textos ainda mais antigos só tornava tudo mais provável.

Quem tivera acesso a esses livros? Havia algum tipo de esforço organizado para trazer os clãs dos magos de volta àquelas terras?

Ele pensou em outra coisa que o demônio dissera: seu salvador está tão perto, escondido entre milhares de desconhecidos e a menos de três dias de jornada daqui. O lugar mais próximo dali
onde havia milhares de pessoas era Caldeum, a maior cidade comercial do Kehjistão. Um lugar
provável para um livro de tal qualidade ser fabricado ou vendido. E havia algo mais, alguém mais,
em Caldeum — alguém que ele desejava ver já fazia muito tempo. Um amigo dos dias sombrios de
Tristram, uma responsabilidade que ele vinha evitando. Agora ele tinha um bom motivo para ir.
Você deve ir até Caldeum.

A voz soou tão forte que por um momento Cain viu Akarat parado ali, sua armadura dourada brilhando, seus olhos luzindo com um fogo interior.
O destino do mundo está em jogo. Você deve ir. Cain piscou, afastou o olhar e então olhou de novo. Já não havia nada diante dele além do vento sussurrando pela rocha, e as primeiras gotas gordas de chuva começaram a cair. Deckard Cain pegou a espada de Akarat, sentindo seu peso estranho e desajeitado nas mãos. O ancião não era um guerreiro, e a lâmina era inútil para ele. Ele a enfiou fundo na areia, deixando-a ali como um pequeno monumento para que outros vissem. Então coletou os textos que encontrara e os guardou na mochila, abrindo caminho em meio à chuva cada vez mais forte para sair das ruínas Vizjerei, subindo as dunas de areia tão rápido quanto seu corpo envelhecido permitia.

Pensou em descansar aquela noite, mas uma voz continuou a apressá-lo. Não havia tempo a perder.
A batalha pelo mundo havia começado.

Continua ...

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