domingo, 21 de agosto de 2016
Contos - Pirilampo - Parte III
Li-Ming estava usando um de seus encantamentos favoritos, que gerava uma fina camada de geada ao seu redor. O gelo no ar derretia tão rápido quanto ela o criava, e assim, a olho nu, parecia que Li-Ming estava cercada por uma leve névoa. Ao descer do camelo ela não usou o estribo e foi baixando lentamente no ar como se correntes invisíveis a sustentassem, até tocar suavemente o chão. Aquilo atraiu a atenção de algumas pessoas que estavam na rua.
— Você tem que usar sua magia assim, de forma tão pouco discreta? — perguntei, irritado.
— O calor está insuportável, Mestre. Eu não sei como o senhor aguenta.
— Eu aguento porque é necessário — respondi enquanto descia do camelo. — Você não fará muitos amigos se comportando assim.
— Você só se preocupa com meu comportamento quando é conveniente me repreender.
— É culpa minha que isso aconteça com tanta frequência?
Embora protestasse, Li-Ming dissipou o feitiço ao se aproximar de mim. A leve umidade que a cercava sumiu imediatamente, absorvida pelo ar do deserto.
— Nós estamos aqui para observar e fazer algumas perguntas, nada mais — lembrei-lhe.
—Observar e fazer algumas perguntas. Nada mais — repetiu Li-Ming.
— Cuide dos camelos — ordenei, ignorando a provocação.
— Não era para observar?
— Depois de cuidar dos camelos — confirmei. — Vou encontrar Isendra.
— Isendra está aqui? — Li-Ming se animou.
— Sim, está. Mas fique aqui. E... Li-Ming...?
— Sim, Mestre? — ela perguntou, solícita.
— Tente não se meter em encrenca.
Li-Ming sorriu.
Protegida pela parede do cânion, Lut Bahadur ficava resguardada quando o vento escaldante soprava de oeste para leste, mas quando ele soprava de outra direção, a cidade ficava exposta. Havia sinais de que o povo tentara construir uma proteção contra o vento, mas esta ruíra há muito. Naquele dia o vento soprava do leste, mas não tão forte que tornasse perigoso ficar ao ar livre. Li-Ming amarrou os camelos perto do poço e olhou por sobre a beirada para o fundo. Eu não precisei olhar para saber que estava vazio. A água estaria estocada em jarros, embora provavelmente não restasse muita. Eu me dirigi até um dos homens sentados sob a sombra inútil de um toldo rasgado e perguntei onde eu poderia encontrar a feiticeira.
Subitamente a terra sacudiu, rolando feito ondas sob nossos pés, e então um tremor mais forte me jogou ao chão de terra batida. Quando olhei para cima, vi Li-Ming com os braços erguidos na altura dos ombros. Seus dedos se moviam como se ela manipulasse os fios de marionetes numa peça.
Tinha sido obra dela.
— Li-Ming! O que você fez? — gritei. O tremor continuava.
— Venha aqui e veja isso — Li-Ming respondeu, orgulhosa, apontando para o poço. Levantei-me e fui até ela, sentindo o chão tremendo sob meus pés. Quando me curvei sobre a borda do poço, vi o brilho fraco de água se infiltrando através da crosta seca no fundo. Li-Ming trouxera água, água de que a cidade precisaria para sobreviver.
— Eu encontrei água bem fundo, talvez um rio subterrâneo que escoa no Oásis de Dahlgur. Desviei o fluxo para encher o poço. A cidade...
— Já chega — interrompi, severo. — Eu disse que viemos aqui para observar e fazer algumas perguntas, nada mais.
— Nós podemos fazer mais, Mestre. Podemos construir um novo quebra-ventos ou consertar o que foi destruído pelas tempestades de areia. Você sempre diz que não devemos fazer nada. Mas por que nós temos essas habilidades, se não para ajudar os outros?Eu estive pensando, Mestre... talvez com nossa magia nós possamos reverter o calor e acabar com a estiagem.
— Nós não faremos coisa alguma. Não é o nosso papel. E você melhor do que ninguém deveria entender as consequências se nós tentássemos alterar o clima numa escala tão grande — repreendi. — Você já se esqueceu do seu erro?
— Eu não sou mais a menina que eu era. Eu aprendi. E nunca vou permitir o sofrimento dos outros! — devolveu Li-Ming.— Me diga por que não podemos ajudá-los. Me diga por que isso seria tão errado.
Apontei para o poço, agora cheio de água, e disse:
— De onde vem essa água? Para onde ela foi? Será que a água que chegava ao oásis virá até aqui sem nenhum efeito colateral? Não se pode criar a partir do nada. Você soluciona um problema e cria mais dez.
Li-Ming era jovem e não se preocupava com detalhes. Ela agia impulsivamente, e só via o que acontecia no momento.
— A água já estava ali, Mestre. As pessoas podiam ter cavado mais fundo por elas mesmas. Eu só facilitei.
—Seu altruísmo lhe faz grande honra, Li-Ming, mas nós, magos, não podemos fazer isso. Sim, às vezes é possível usar magia para ajudar as pessoas, mas não toda vez, e antes de agirmos é necessário considerarmos cuidadosamente os custos envolvidos. Isso não está aberto a discussão. Você vai me ouvir.
— Mas Li-Ming está certa — respondeu uma voz de mulher.
— Isendra! — exclamou Li-Ming, correndo na direção da feiticeira, que a abraçou com carinho.
— Este problema não nos diz respeito, nem a você — retruquei. — Li-Ming, deixe-me falar com Isendra. A sós.
Li-Ming franziu a testa e abriu a boca para falar, mas se conteve. Ela nos deixou e se uniu aos homens e mulheres que estavam indo buscar água no poço, carregando jarros e outros vasilhames. Fiquei olhando enquanto ela se afastava.
— Se esse problema não nos diz respeito, então por que estamos aqui? — perguntou Isendra.
— Às vezes você e ela ficam parecidas demais — resmunguei. — Ela me disse a mesma coisa.
— E como ela está?
— Não mudou muito com os anos. Continua tão impetuosa quanto no dia em que a conhecemos. Me pergunto se fizemos bem ao ensiná-la.
— Ela não se contenta em deixar as coisas como estão. Ela quer melhorar a vida das pessoas.
— Ela não pensa nas consequências. Ela vive no aqui e agora, mas eu e você sabemos que é necessário ter muito mais em mente. Esse é o nosso fardo, liderar os clãs de magos.
— Li-Ming pode bem estar certa. Nós três somos os magos mais poderosos de hoje. Unindo nossos poderes, por que não acabar com este verão e restaurar a ordem normal das estações, não acha?
— Esse pensamento tem origem nas emoções, não na razão — argumentei. —Nós não podemos alterar o clima. Não vai funcionar.
— Li-Ming jamais diria isso — retrucou Isendra.
— Você não é Li-Ming. Ela é uma menina tola.
— Você vê uma menina. Eu vejo uma mulher que pode salvar este mundo.
— Profecia. Destino. — Dei de ombros. — Quem sabe o que o dia de amanhã trará? Se isso vier a acontecer, você e eu enfrentaremos a situação e talvez Li-Ming lute ao nosso lado. Mas ela não é a única que pode. E como vamos saber se as profecias são verdadeiras? Os Lordes do Inferno deveriam ter atacado há vinte anos. Nosso maior medo deve ser o medo de nós mesmos.
— Você se tornou um homem medroso depois de velho — desafiou Isendra.
— E você ficou descuidada. Você não irá interferir.
— Farei o que eu preciso fazer — replicou Isendra, se retirando. — Assim como você.
Depois que Isendra saiu, fiquei observando Li-Ming. Ela estava ajudando um menino que desmaiara de calor. Ele estava febril. Suas bochechas estavam vermelhas e suor porejava em sua pele. Li-Ming lançou um feitiço e o ar em volta de suas mãos esfriou. Quando ela levou as mãos para perto do rosto do menino, ele suspirou pacificamente enquanto uma leve brisa soprava os cachos de cabelo grudados em sua testa.
— Obrigada — disse a mãe do garoto. — Andam falando de você. Mas você restaurou nosso poço e salvou meu filho... Isso não me parece errado.
Li-Ming sorriu e se levantou, mas quando chegou perto de mim sua expressão estava séria.
— Essas pessoas vão morrer — disse a jovem.
— Pode ser. Mas nossa interferência talvez não impeça isso.
— Nós jamais saberemos, não é? — Li-Ming protestou, seus olhos castanhos buscando os meus. — Você verá os rostos deles em seus sonhos?
— Deles e de muitos outros. Esta é a nossa maldição, Li-Ming, e você vai aprender isso dolorosamente. — Coloquei minha mão gentilmente em seu ombro. — Vamos embora.
Continua ...
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