domingo, 25 de dezembro de 2016

A Ordem - Memória Capítulo I

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MEMÓRIA

Tristram, 1213

O garoto meteu as mãos na túnica de lã como se quisesse aquecê-las, por mais que o calor do fogo fosse suficiente para chamuscar a penugem das suas bochechas. Os ombros estreitos e o rosto magro e castigado faziam que ele parecesse muito mais velho que seus meros 11 anos. O menino levava uma bolsa a tiracolo, feita de couro de cervo, carregada com um livro pesado e cuja alça o feria, deixando marcas vermelhas na pele. Ele não se incomodava muito com isso, ou com as coisas que os outros poderiam dizer sobre ele. Não tinha amigos de verdade. Era um solitário nato, confortável apenas entre seus livros, e gostava de viver assim. A luz da fogueira tremeluzia e dançava sobre as outras crianças, todas sentadas com rostos enlevados e reluzentes, olhando para cima num êxtase espiritual como se a silhueta que contava histórias diante delas fosse a própria arcanjo Auriel.



Não. Não estava certo. O menino balançou levemente a cabeça, desgostoso. Talvez alguns anos atrás ele pudesse ter feito tal comparação, mas não hoje. A silhueta que discursava com tanta confiança era apenas sua mãe, uma mortal com o mesmo conhecimento rudimentar de todos os outros mortais, apesar da herança de sangue. E, se os arcanjos realmente existissem, eles certamente não perderiam tempo visitando um lugar esquecido como este.

Uma tora espocou, lançando um forte fulgor de fagulhas noite acima e dando um susto nas outras crianças. A fumaça serpenteava e pairava ao redor das cabeças delas, exalando um odor acre e amargo que mascarava o fedor do celeiro abaixo. Ela os tinha sob sua total atenção, como sempre;
os anciãos da aldeia até podiam revirar os olhos quando ela passava, e o taverneiro fofocar com os
guardas algo sobre um toque de loucura, mas as crianças sempre viriam, e sempre acreditariam.

Até que crescessem, pensou Deckard Cain, e abrissem os olhos para a realidade.

— O último dos Males Supremos, e o mais jovem deles, Diablo, o Senhor do Medo, era o mais forte de todos e terrível de se ver. É dito que aqueles que o contemplaram diretamente enlouqueceram de pavor. Mas os Horadrim jamais desistiram da missão. Depois que Tal Rasha foi sepultado para sempre com o Senhor da Destruição, sob os desertos de Aranoch, Jered Cain liderou os magos restantes através de Khanduras, batalhando contra os lacaios de Diablo em cada trilha. —

Aderes fitou uma criança por vez, encontrando e sustentando o olhar de cada uma. Quando seus olhos faiscantes se conectaram aos de Deckard, o garoto os desviou, como se buscasse algo muito além do círculo de luz. Quando Aderes retomou a narrativa, sua voz vacilou um pouco, ou talvez ela estivesse apenas recuperando o fôlego.

— Os Horadrim, com suas poderosas magias, causaram grande estrago nos exércitos do demônio. Porém, Diablo evocou milhares outros de seus servos aterrorizantes do Inferno Ardente para lutar por ele, e finalmente Jered decidiu que era chegada a hora da batalha final. O arcanjo Tyrael tinha formado os Horadrim com um único fim: conter os Males Supremos e bani-los de nossas belas terras, e não permitiria o fracasso.

A pele de Aderes Cain brilhava como encerada, com os cachos negros como carvão úmidos contra a testa. Ela tinha o olhar vazio dos malditos. Deckard tinha escutado aquela história muitas vezes antes, e ela se tornava maior e mais impressionante a cada vez que era contada. O garoto conhecia todas as voltas e reviravoltas. Agora era o momento em que Aderes chocaria as crianças menores revelando que os heroicos magos tinham feito sua batalha final bem aqui nesta terra, e que o próprio chão sob os pés deles tinha se enegrecido de sangue demoníaco. A voz da mãe ficaria ainda mais alta conforme Jered e seus irmãos Horadrim derrotassem hordas e mais hordas de criaturas monstruosas, finalmente aprisionando Diablo na pedra da alma e a enterrando bem fundo, onde ela jaz ainda hoje.

A lenda costumava deixar Deckard empolgado, mas ele não era mais um garotinho, e a loucura crescente da mãe se tornara um constrangimento. Havia coisas mais importantes com as quais se preocupar agora, e não suportava mais escutar aquilo. Quando Aderes se virou por um momento para se dirigir aos outros, Deckard saiu de fininho do círculo e sumiu na noite fresca.

O ar estava úmido e muito mais frio longe do fogo. Deckard andou descalço pela grama escorregadia, pressionando a túnica contra o corpo magro. Podia ver a própria respiração no ar, erguendo-se dele com uma criatura de outro mundo. Em algum lugar perto do celeiro abaixo, um homem praguejou ao mesmo tempo que uma ovelha berrou ao ser abatida, e então na brisa veio o cheiro agridoce do sangue. O nevoeiro pairava ao redor das árvores que limitavam a mata, e um arrepio deslizou pela espinha de Deckard como dedos fantasmas. Ele estremeceu e se apressou para chegar em casa, a meros 50 passos dali.

Do lado de dentro, na pequena entrada, havia dois lampiões acesos, mas o menino os ignorou, permanecendo imerso em trevas enquanto se dirigia silenciosamente até o próprio quarto.

O caminho estava gravado na memória. A casa também estava fria, mais do que Deckard esperava.
Os dedos do menino tocaram a encadernação do livro que levava no bornal, acariciando-o, mas ele não o puxou para fora, ainda não, preferindo estender deliciosamente aquele momento, como um beberrão que se negasse o sabor do vinho por um único instante adicional antes de levar o cálice aos
lábios. Tratava-se de um livro sobre a história de Hespéria e dos Filhos de Rakkis, um alfarrábio
acadêmico, completamente diferente das coisas que a mãe dele gostava de ler: contos de nobres heróis e mundos impossíveis acima e abaixo deste, com habitantes que dançavam sempre logo fora
de vista. Tudo puro folclore.

Deckard queria ficar sozinho um pouco. Mas logo ouviu a porta se abrindo e a mãe entrando, argando os velhos tamancos de madeira junto à lareira. Logo ela acenderia o fogo e poria água para ferver, para o chá, e Deckard escutaria a mãe cantarolar sem melodia enquanto lia ou tricotava na cadeira de balanço. Só que nada disso aconteceu: Aderes veio direto até o quarto do filho, e ele mal teve tempo de meter o livro debaixo da cama e se sentar antes que ela batesse à porta e entrasse.

— Deckard? — Aderes erguia um lampião contra as trevas, olhando o menino com olhos apertados. — Você foi embora antes que eu terminasse. — Sob a suave luz amarela, ela parecia estar se desmantelando, com cabelos despenteados que caíam sobre os ombros em pesados cachos.

Havia uma mecha grisalha surgindo, percebeu Deckard, junto à têmpora direita. Ele não tinha percebido antes.

— Já ouvi as histórias muitas vezes. Estava cansado e queria me deitar.

— Não são apenas histórias, Deckard. Jered é seu antepassado, e você é o último de uma orgulhosa linhagem de heróis.

— Os Horadrim.

— Isso mesmo. Descendentes diretos dos grandes magos, encarregados de proteger

Santuário dos demônios que espreitam este mundo. Você sabe disso.
Deckard deu de ombros. Ele não gostava de olhar nos olhos dela, por não saber bem o que encontraria neles. Ficou em silêncio por algum tempo antes de falar novamente.

— Por que você não me deixou adotar o nome do meu pai?

Ele não sabia por que tinha perguntado aquilo. O pai morrera havia algumas semanas de uma doença debilitante após quase uma vida inteira trabalhando no curtume; primeiro varrendo o chão, depois como aprendiz e, finalmente, durante os últimos dois anos, como encarregado do curtume. Ele nunca fora de falar muito, e demonstrações de qualquer emoção tinham sido muito raras. Deckard não era nada parecido com o pai, ou talvez fosse bastante.

A mãe pousou o lampião na mesinha de cabeceira e se sentou ao lado do filho. Estendeu a mão para tocar o ombro de Deckard, que se virou um pouco, o suficiente para fazê-la retrair a mão como se a tivesse queimado.

— Você está magoado e bravo — afirmou Aderes. — Eu entendo. Mas isso não vai trazê-lo de volta.

Deckard encarou os dedos entrelaçados no colo, e então sentiu a palha sob a coberta que tinha ficado desbotada e puída depois de tantas lavagens. Ele dormira naquela mesma cama desde que deixara o berço, que por sua vez tinha ficado sempre naquele mesmo quarto daquela mesma casa que fazia parte daquele mesmo vilarejo. Nada nunca acontece aqui. Quando Deckard ergueu o olhar, os olhos da mãe cintilavam à luz do lampião.

— Eu amava o seu pai, do meu jeito. Mas meu destino não é dar as costas ao nome que carrego, e nem o seu. Os pergaminhos afirmam que, algum dia, quando tudo parecer perdido, os Horadrim vão se reerguer, liderados por um novo herói na batalha pelo destino de Santuário. Você não entende? Seu destino será maior que isto.

Deckard cerrou os punhos.

— Que destino maior? Os Horadrim se acabaram, então você virou uma contadora de histórias para preencher o vazio. Mas o povo de Tristram ri de você. Olhe em volta, mãe! Onde estão seus anjos e demônios? Onde estão seus heróis? Os Horadrim já estão mortos e enterrados, e esta cidade continua a mesma!

O menino se levantou e foi até a janelinha, tremendo de cima a baixo. Você é o último de uma orgulhosa linhagem. Ele não queria ter nada a ver com aquelas bobagens, não mais. Queria ficar sozinho e ler os próprios livros.

A noite estava abafada e úmida, e o nevoeiro tinha se adensado. Dava para ver nuvens sob as luzes dependuradas em postes, obscurecendo o solo lamacento. Deckard ouviu a mãe se levantando, mas não se virou imediatamente. Apenas quando ouviu o crepitar da chama ele girou e se deparou com Aderes, segurando o livro contra o lampião aberto. Enquanto as frágeis páginas secas ardiam, os olhos da mãe de Deckard eram como poços cor de laranja e amarelo que refletiam o calor de volta até ele.

Com um arquejo de espanto, o garoto saltou e arrancou o livro da mãe, batendo-o no peito até que ele mesmo se queimou. Deckard largou o livro no chão de terra e o pisoteou, parando em seguida, ofegante.

— O que você fez?

— Esse não faz parte do seu destino — explicou Aderes. — Os livros certos para o seu caminho estão com as coisas de Jered, se você quiser lê-los. Eu guardei.

Deckard fitou os restos do livro sobre Hespéria. As páginas estavam queimadas e enegrecidas, irrecuperáveis. O menino foi tomado pela raiva, que lhe subiu até a garganta.

— Seus demônios vivem dentro de você, mãe, e em nenhum outro lugar. Isso eu lhe prometo. Se eles estão a caminho, como você diz, deixe que venham, então. Por que não se mostram, se é que existem?

Um grito estrangulado escapou de Aderes, e ela levou as mãos aos lábios, dando um passo cambaleante para trás.

— Cuidado com o que você deseja, Deckard. Você não sabe o que está pedindo...

— Deixe que venham!

O grito do menino preencheu a noite, ecoando de volta até ele e então morrendo. Por um momento, o mundo pareceu ficar imóvel, e Deckard sentiu uma corrente de ar nas pernas nuas, como uma carícia gélida. O corpo dele formigou com excitação e medo, um desejo momentâneo de mudança, um desejo por qualquer coisa que pudesse tirá-lo dali. Deckard sabia que, se nada assim acontecesse, ele acabaria igual ao pai, trabalhando no curtume ou vendendo carne a viajantes ocasionais que ainda vinham olhar, espantados, o velho monastério Horádrico que se assentava em ruínas. O menino morreria ali, seus ossos afundariam na terra e ninguém se lembraria de quando ele vivera e morrera.

— Eu quero acreditar — anunciou, subitamente muito cansado. — Mas não consigo.

— Então eu não posso te ajudar — respondeu a mãe, balançando a cabeça. — Você já está perdido. — Um soluço ficou preso na garganta dela. Aderes se virou e abriu a porta com dificuldade, deixando o lampião na mesa enquanto saía do quarto.

Parte de Deckard queria ir atrás dela e pedir desculpas, dizer que ele não tinha querido dizer aquelas coisas, mas suas pernas permaneceram fixadas onde estavam. Talvez, então, ele tivesse dito aquilo tudo para valer, sim. O lampião tremeluziu, como se o hálito de uma presença invisível o tocasse. Sombras dançaram nas paredes, e por um momento o menino achou que ouvia um sussurro: Deckaaaaard...

Ele virou-se de volta à janelinha, aberta para a noite. O ar que por ela entrava era gélido, parecendo muito mais frio do que era de se esperar. Deckard foi até lá e espiou para fora, estreitando os olhos para ver melhor. Não havia nada a princípio além de trevas e névoas, então algo se moveu vindo dos campos. O menino estremeceu quando um cão vira-latas que procurava restos se afastou rapidamente com um ganido suave, desaparecendo a caminho de um grupo de casas. Deckard olhou morro acima para o velho monastério que se erguia sobre o vilarejo como uma carcaça ancestral e vazia, algo que fora usado, esgotado e abandonado. Ele apertou a túnica que vestia em volta do corpo e tremeu, momentaneamente espantado com a própria arrogância. No fundo do coração, rezou por algum evento que o desviaria do caminho que se estendia claramente diante dele, mas Deckard sabia que tal evento não aconteceria. A vida real não era como os mitos.

Ele catou as páginas do livro sobre Hespéria, e as bordas negras se desfizeram em seus dedos.
Deixe que venham. Levaria mais 50 anos, mas o desejo de Deckard Cain seria realizado.

Continua ...

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2 comentários:

  1. Os links do final da postagem não estão funcionado... Se precisar de ajuda com o layout chama inbox ^^

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