sábado, 20 de agosto de 2016

Contos - Pirilampo - Parte II



Aquele foi nosso primeiro encontro, e eu ainda me lembro bem de tudo. Isendra dedicou-se ao papel e tornou-se mentora de Li-Ming, que, por sua vez, adquiriu um profundo respeito pela mestra. Elas eram mais parecidas do que Isendra ou eu suspeitávamos. Mas Li-Ming logo exauriu o conhecimento da mentora. O relacionamento delas mudou e Li-Ming passou a tratar a feiticeira mais como uma igual do que como uma professora. Isendra também estava mudando, e isso me preocupava. Ela era muito permissiva com o comportamento da jovem. Sem ter o que aprender, Li-Ming seguiu a curiosidade natural que sempre a instigara, e então os problemas começaram.

Quando surpreendi Li-Ming fuçando as prateleiras da biblioteca que abrigavam textos proibidos, considerados perigosos demais para estudo, percebi que precisava agir. Assumi o treinamento de Li-Ming apesar dos protestos de Isendra e passei a vigiá-la de perto. Tentei estruturar e disciplinar a vida de Li-Ming e apresentar a ela uma linha de estudos que levaria seus interesses para áreas mais aceitáveis.



Sem a responsabilidade de ensinar Li-Ming, Isendra já não tinha muito o que a prendesse no Santuário Yshari e agora passava poucos dias ali. No entanto ela permaneceu uma grande amiga, e seus conselhos sempre foram valiosos. Quando nós três nos reencontramos muitos anos mais tarde, Isendra havia começado uma nova vida longe do Santuário e de sua antiga estudante.

Eu gostaria de poder contar com sua sabedoria agora.

O verão deveria ter dado lugar aos dias frios de outono e inverno, como é a ordem natural das coisas, mas depois de um ano o calor sufocante continuava desde os confins do império ao sul até as Estepes Áridas ao norte. Ainda era o começo do reino do Imperador Hakan II, e os supersticiosos falavam sobre aquilo ser um mau presságio para o governo. Mesmo no deserto o clima piorou de forma nunca vista. O calor implacável cobria tudo. Tempestades de areia e redemoinhos grassavam pelos ermos escaldantes. Os Mares de Areia faziam jus ao nome. As dunas se moviam criando um cenário inconstante, desencavando enormes protuberâncias de pedra com bordas afiadas o suficiente para rasgar carne e osso como dentes monstruosos se erguendo da areia quese tornara vermelha como se tingida de sangue. O deserto engoliu vilarejos inteiros, deixando apenas alicerces nus de pedra ou algumas paredes de lama onde antes havia casas.
Mais um ano se passou e o verão não dava sinais de acabar. O império secou. Mandei uma mensagem para Isendra, pedindo que ela investigasse possíveis causas para aquele clima. Saí de Caldeum e fui para o coração do deserto junto com Li-Ming para tentar descobrir alguma pista.

Vários meses se passaram, mas estávamos voltando para casa com mais perguntas do que respostas. Li-Ming e eu viajávamos de camelo, e um dia Lut Bahadur lentamente apareceu no horizonte. Era uma das maiores cidades das Fronteiras, em um trecho de deserto onde a vida era possível, embora não fosse fácil. O calor parecia algo vivo, se enterrava bem fundo sob nossa pele, eliminava qualquer lembrança do frio. Eu usava vestes leves de algodão com um capuz e protegia o rosto das tempestades de areia com um lenço de pano que deixava meus olhos descobertos. Li-Ming já havia se tornado uma jovem mulher então. Os traços de inocência infantil tinham-se apagado e ela agora possuía uma expressão séria que dava lugar, às vezes, a um sorriso insolente bem ensaiado. Li-Ming usava suas melhores roupas, apesar do calor, usando magia para suportar o incômodo.

— O fim de nossa busca se aproxima, Li-Ming, e no entanto não estamos nem um pouco mais perto de resolver o mistério desse verão sem fim — eu disse, enquanto seguíamos.

— Eu não sei explicar, Mestre. Creio que algo está consumindo o deserto. Parece que os limites da realidade estão enfraquecidos, como quando olhamos à distância em um sonho.

— Talvez você apenas esteja sentindo o oceano de fogo e rocha derretida sob nossos pés."

— Como o sol acima de nossas cabeças? — perguntou, desafiadora. — Você não me leva a sério, mas estou certa de que esse clima não tem origem natural. Quando eu vasculhei os arquivos da cidade...

— Um feito interessante considerando que é proibido sair do Santuário Yshari.

Li-Ming me devolveu um olhar seco e continuou:

— Eu examinei os registros do tempo. Nós nunca passamos por um período tão intenso de calor. O Oásis de Dahlgur pode secar se isso não acabar logo.

— Nisto concordamos.

— Mas há mais — continuou Li-Ming. — Há algo no ar que não se parece com nada que eu já tenha sentido. Era para estar frio e não está... Os ventos deveriam estar calmos e não estão.

— Será possível que você ainda insista em procurar uma explicação onde não há nenhuma? Sabemos muito deste mundo e das estrelas sobre nós, mas no final isto pode muito bem ser tão natural quanto as eras de gelo e neve. Você não viveu tanto quanto eu, e os mistérios do universo devem parecer novos a você.

— Se você acredita nisso, então por que estamos aqui, Mestre?

— Você me pegou nessa — respondi, rindo.

Li-Ming olhou em direção à cidade.

— Há uma forte magia em nosso mundo. Por exemplo, as Terras do Pavor. Um lugar inteiro destruído, e quem pode dizer se a destruição de lá não começou da mesma forma? Já faz vinte anos desde que os Lordes do Inferno caminharam por nosso mundo. Isendra me contou sobre a invasão fracassada. Talvez eles estejam tentando outra vez.

— Às vezes eu penso que você é tão ávida por cumprir o seu destino que chegaria a agradecer se alguma calamidade se abatesse sobre nosso mundo.

— É o meu destino, afinal de contas. E ele se concretizará mais cedo do que você pensa.

Essa era a opinião de Li-Ming, e Isendra partilhava dela. Li-Ming acreditava que um dia iria deter uma invasão do inferno como Isendra fizera antes dela. Tudo por causa de um livro que Li-Ming lera, uma profecia escondida em um dos volumes da biblioteca que detalhava os sinais do retorno dos Lordes do Inferno. Isendra várias vezes tentara me convencer de que a profecia era verdadeira, e embora eu não ignorasse o perigo, permaneci cético.

Li-Ming tinha muitos talentos, mas o maior deles era a leitura da magia. Ela era muito observadora e sabia discernir com facilidade a estrutura oculta dos feitiços. Uma vez eu lhe perguntei como era enxergar as coisas. Ela descreveu os fios invisíveis da magia e as auras de poder arcano que se formavam ao redor dos magos quando eles lançavam seus feitiços, e descreveu os borrões verdes e vermelhos que ficavam no ar, como os que se gravam na retina quando olhamos para o Sol. Ela sentia o gosto, o cheiro, via e sentia a magia. Assim, quando Li-Ming me disse que o verão sem fim era causado por mão mortal ou algum outro grande poder, eu fiquei propenso a acreditar nela, pois esta também era minha opinião. Mas não falei coisa alguma, pois se aquilo fosse verdade, as consequências seriam muito preocupantes.

Caldeum ficava em uma extensa chapada que se erguia sobre o deserto. A chapada terminava em penhascos íngremes, em cuja base ficava Lut Bahadur. Acima das muralhas da cidade, moinhos giravam placidamente, em épocas normais, mas agora muitos deles haviam sido derrubados e inutilizados pelos ventos fortes. Toldos de lona desbotados e rasgados se estendiam sobre ripas de madeira que se projetavam dos telhados de barro para oferecer alguma proteção contra o Sol, mas de pouco adiantava, pois a sombra não oferecia alívio. Quase todos agora usavam panos escondendo o rosto como eu, então não se podia ver nada além da expressão dos olhos, cheios de medo ou esvaziados de esperança.

A cidade estava morrendo...

Continua...

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