Garrosh esquadrinhou a paisagem de Nagrand com cuidado. Nenhum batedor do Brado Guerreiro aparecia há dias. E por que apareceriam? Aquele topo de colina ficava nos limites do território do clã, e em época de paz não havia muito para patrulhar ali. Os ogros saqueadores vinham do oeste. Outros clãs órquicos vinham do oeste. Garrosh se lembrou de que até a caça ali era fraca naquela estação.
Ele ainda era bem jovem na última vez em que se sentara naquele lugar, e...
Não. Garrosh nunca tinha se sentado naquele lugar, nem subido aquelas árvores nem passado os dedos por aquelesmontes de capim quando criança. Este era um mundo diferente.
Kairozdormu o acautelara quanto a algumas descobertas estranhas. Ele disse: “ Eu passei a vida estudando as linhas do tempo. Se você tentar contar e comparar as folhas de grama, vai acabar enlouquecendo. Meus planos requerem algumas... condições favoráveis, e nós as encontraremos aqui. Esta é a linha do tempo perfeita para nós. Não é uma imagem perfeitamente idêntica, mas vai servir.”
Isso era o que iriam ver. Garrosh protegeu os olhos com a mão e olhou para a terra banhada pelo sol poente. Pelo menos ele sabia que o topo da colina era um local seguro para descansar. O prado aberto, verdejante e denso, revelaria quaisquer intrusos muito antes que pudessem divisar Garrosh.
Atrás dele, Kairoz descansava, deitado de costas perto da fogueira fumegante, segurando um grande estilhaço curvo de vidro acima dos olhos. A luz do fogo e o sol poente criavam fulgores brônzeos na superfície do objeto. Ele perguntou: — Já pensou sobre o que discutimos, Grito Infernal? Você já perdeu muito tempo...
Garrosh girou e encarou Kairoz com firmeza. — Não me chame por esse nome. Não aqui, nem nunca.
— Empurraria Uivo Sangrento contra o meu pescoço. E o seu — respondeu Garrosh.
Kairoz deu um sorrisinho. A expressão em seu rosto era a de um quel'dorei , e parecia deslocada em um rosto órquico. — Seu pai e a arma dele não podem me tocar. A menos que ele possa voar.
Garrosh não respondeu. Eu espero que você revele sua forma dragônica na frente de Grommash Grito Infernal. Eu realmente espero.
Kairoz pôs o estilhaço de vidro no colo. Até aquele movimento simples parecia errado. — E então? Você se decidiu?
— Sim.
— E?
Garrosh manteve o tom calmo na voz. Ele disse: — É hora de nossos caminhos se separarem.
— É mesmo? — Kairoz deu uma risadinha. — Eu não me lembro de oferecer essa opção.
— Você se parece com um orc, mas não age como um. Eles vão sentir seu cheiro. Eu preciso me aproximar sozinho.
— Eu entendo. E em quanto tempo eu poderei me reunir a você? — o sorriso de Kairoz se aprofundou.
— Quem sabe? Quando for a hora certa...
— Você quer dizer "nunca". — Kairoz sacudiu a cabeça. — Ah, Garrosh, Garrosh, Garrosh. Sutileza não é o seu forte. Não vá passar vergonha.
Garrosh conteve uma réplica dura. — Muito bem. — Sua voz estava controlada. — Eu vou ser claro: Minha Horda não precisa da ajuda de um dragão.
— Hmm. A sua Horda? — Kairoz se levantou lentamente, segurando com cuidado o estilhaço de vidro na mão. — A suaHorda depôs você. Sem mim, você ainda estaria apodrecendo em uma cela de prisão. Você não tem o direito de me mandar ir embora. — O orc falso inclinou a cabeça. — E se você se recusar a se comportar, eu posso fazer você desejar ainda estar à mercê do machado do carrasco.
A outra mão de escondia-se sob a faixa que lhe envolvia a cintura, o único item de vestuário que ele mantivera de suas roupas de elfo altaneiro. Garrosh ouviu um tilintar metálico. Uma arma escondida, talvez?
A antecipação da violência se apossou da mente de Garrosh. O mundo ficou mais claro, mais nítido. Ele não demonstrou, e disse: — Meu povo merecia mais do que o destino reservou para eles. Eu vou consertar isso. Sem você.
— Você não me dá ordens — disse Kairoz. — Eu...
Já chega. Garrosh saltou para diante sem aviso, soltando um brado de batalha que preencheu o ar. Com três passadas ele ultrapassou a fogueira e agarrou Kairoz pela garganta, apertando e erguendo-o.
Houve um clarão de luz brônzea. O estilhaço de vidro na mão de Kairoz brilhou.
Garrosh piscou. Sua mão apertava apenas o ar. A fogueira estava diante dele outra vez, a três passos de distância, como se ele não tivesse se movido. Kairoz sumira. Houve um momento de confusão mental e então um braço envolveu a garganta de Garrosh e o ergueu no ar.
O mundo virou de cabeça para baixo. Metal frio — e familiar — se fechou com um clique em volta de seus pulsos.
— Você acha que, porque agora sou mortal, eu fiquei fraco? — sibilou Kairoz. — Você já não é mais chefe guerreiro, Grito Infernal. Você está livre porque eu assim quis. Você se juntará ao seu pai e reunirá os antigos clãs órquicos porque eu assim quis. — O disfarce de Kairoz desapareceu do pescoço para cima, e a cabeça de orc tornou-se algo maior, reptiliano. Os olhos enormes do dragão de bronze desceram até ficar a bem próximos do rosto de Garrosh. Kairoz disse: — Você é um peão. Nada mais. Esforce-se para me ser útil, ou você será descartado.
Garrosh mostrou os dentes. Seus pulsos tinham sido atados com os mesmos grilhões que ele usara ao escapar de seu julgamento absurdo. Agora ele compreendia por que Kairoz tinha removido os grilhões em vez de despedaçá-los.
Kairoz escondera os grilhões, prontos para ser usados. Ele antecipara o confronto. Não, ele provocarao confronto.
Lentamente Garrosh controlou sua fúria. Ele controlou sua respiração. Respirou pausadamente. "Tolo. Ele armou para você. Não cometa esse engano de novo." Aos poucos o mundo deixou de aparecer em vermelho diante de seus olhos. Sua voz soou constrita, mas serena.
— E se você não precisasse de mim, dragão, teria me deixado em Pandária — disse o orc. — Suas ameaças são vazias.
A boca reptiliana de Kairoz se curvou em um sorriso. — Contanto que nós estejamos entendidos. — Ele retornou completamente à forma órquica e se levantou, afastando-se de Garrosh.
— Ah, entendi, sim. — Garrosh rolou de lado e usou as mãos amarradas para se erguer. — Pode acreditar.
Algo faiscou em seus olhos quando ele se levantou. Perto dali estava o pedaço de vidro, que caíra no chão durante a luta. Kairoz apontou para ele. — Pegue.
Garrosh olhou para o vidro. — Pegue você os seus brinquedos.
— Agora é seu. — Kairoz falou como se se dirigisse a uma criança teimosa. — Você vai precisar.
Garrosh olhou para o estilhaço, mas não se moveu. O vidro curvo pulsava, faiscando com uma tênue luz brônzea, a mesma luz que ele vira quando o dragão escapou de suas mãos. As bordas pareciam afiadas. Com as mãos atadas, seria complicado pegá-lo sem se cortar. — Eu achei que você tivesse dito que isso não tinha mais poder.
— Eu disse que não tinha mais o poder de outrora. Não quer dizer que não tenha poder nenhum. Como você acabou de ver — disse Kairoz. Seu sorriso tinha voltado.
Garrosh ergueu as mãos atadas. — E isso aqui?
— Ainda parecem ter bastante poder, não é? Os grilhões vão ficar fechados até você me convencer de que entendeu qual é o seu lugar. — Kairoz voltou à fogueira e começou a chutar terra para apagar o fogo. — Pegue. Isso. Agora.
Respirar com calma. "Não deixe ele provocar você de novo". Garrosh pegou o estilhaço com cuidado, equilibrando-o na palma das mãos. Outrora, quando a peça estava inteira durante o julgamento de Garrosh, a Visão do Tempo tinha duas imagens de dragões de bronze entrelaçadas ao redor do vidro. O estilhaço ainda tinha grudados a cabeça e o pescoço de um dos dragões. Era uma alça conveniente.
— Imagino que isto não tem poder para mim — disse Garrosh, com a voz tensa. "Ou você não teria me deixado tocar nele." Pensar nisso fez a raiva de Garrosh encrespar-se, quente.
— Certamente que não. Mas não vá perder. Isso me deixaria zangado — disse Kairoz. Ele se afastou da fogueira, tendo arrancado uma folha de um galho baixo e a esmagado entre os dedos até que virasse polpa verde. — Você estava certo, Garrosh sobre eu e você sermos estranhos aqui. Vai ser melhor se nos apresentarmos ao Brado Guerreiro separadamente. Com meses de intervalo, até. Isso vai diminuir as chances do seu povo presumir que você e eu estamos... combinados. — Ele deixou a folha amassada cair e limpou a mão na coxa. Uma tênue mancha esverdeada ficou em sua palma. — Mostre o vidro a eles. Mesmo sendo tão primitivos aqui neste mundo, seu povo conhecia algo do sobrenatural, não é? Seu xamã deve dar conta. Qualquer idiota com algum talento pode entender o poder do que você está levando. Isso vai bastar para dar a eles uma ideia do que é Azeroth, e das riquezas de outros mundos. Quando você os tiver convencido a se juntar à sua Horda ideal para a conquista, eu aparecerei. Serei só mais um orc seguindo os novos rumos do seu povo. — Kairoz abriu os braços. — Eu vou descobrir novos usos milagrosospara o estilhaço. Nós o usaremos para viajar para qualquer mundo que desejarmos.
— Eu só estou interessado em um mundo — disse Garrosh.
— É que você não vê o que é realmente importante. Você quer umaHorda, livre da mácula demoníaca. Mas eu quero mais. Nós podemos cultivar um número infinito de Hordas...
Garrosh riu.
Kairoz baixou os braços. Sua expressão parecia perigosa. — Você duvida de mim?
Garrosh o encarou abertamente. — A ampulheta foi destruída ao nos mandar para cá. Eu a vi quebrada no chão daquele templo pandarênico. — Ele ergueu o estilhaço. — Você pode conseguir fazer alguns truques com isso aqui, mas não finja que ainda é a Visão do Tempo.
— Pense direito, Grito Infernal. — A voz de Kairoz era branda. — Como a maior parte da ampulheta está na nossa Azeroth, essa peça ressoa em harmonia com nossa linha temporal. É um vislumbre... Um faiscar do tempo. Com um pouco de esforço eu vou conseguir...
— Nos levar de volta. — Garrosh sentiu o coração acelerar e a pele se arrepiar. Planos começaram a se desenrolar em sua mente. — Não só de volta à nossa Azeroth. De volta ao nosso tempo.
— E isso é só o começo — disse Kairoz. Ele se virou, gesticulando para o sol que descia no horizonte de Nagrand. — Primeiro Azeroth. Então outros mundos. Todos eles. Tantos quanto precisarmos. — O dragão de bronze começou a rir. — Não seremos limitados por nada. Nem mesmo pelo tempo. As possibilidades são infinitas. Eu me tornarei infinito...
Três passadas e Garrosh enfiou o estilhaço nas costas de Kairoz.
A risada se transformou em gritos. O vidro pontiagudo rasgou a carne facilmente, sem quebrar, mesmo atravessando músculo e raspando em osso. Garrosh segurou firme a peça de bronze com as mãos atadas.
Poder irrompeu no vidro. Escamas de bronze apareceram e desapareceram na pele de Kairoz. Ele estava tentando usar o estilhaço, tentando se transformar em dragão. Não estava funcionando.
Garrosh o empurrou para o chão e caiu por cima, empurrando a ponta do vidro pelo ombro de Kairoz até tocar a clavícula, quando então ele a arrancou. Os gritos ficaram mais altos. Fracas mãos de orc se estenderam tentando afastar Garrosh. Ele baixou o rosto até chegar bem perto dos olhos do dragão de bronze e enterrou o estilhaço em sua garganta. Os gritos tornaram-se engasgos.
Garrosh segurou firme o estilhaço, ignorando as torrentes de energia entrando e saindo do vidro, concentrando-se na surpresa completa estampada nos olhos de Kairoz.
— Chega disso — disse Garrosh. — Chega de manipuladores escondidos nas sombras. Chega de aproveitadores oferecendo poder corrompido. Chega de gente como você.Os orcs não terão mais mestre nenhum.
Garrosh girou o estilhaço e o empurrou pelo peito de Kairoz, depois puxou e perfurou o dragão duas vezes. Sangue derramou-se pelo topo da colina. Não sangue órquico, não o sangue de alguma criatura que já tivesse caminhado por aquele mundo, mas a terra o receberia da mesma forma.
Finalmente Garrosh arrancou o estilhaço e se ergueu.
Kairoz convulsionava no chão. Garrosh observou, curioso. Ele nunca tinha matado um dragão de bronze. O estilhaço tremeu em sua mão, pulsando junto com as últimas batidas do coração do dragão. Névoa brônzea, de partículas do tamanho de grãos de areia, se evolava de Kairoz. Não se dispersava feito fumaça, mas unia-se em um vórtice fino feito corda, girando e desaparecendo como se fosse arrancada do mundo.
Quando a névoa de bronze sumiu, o estilhaço se aquietou. Os olhos de Kairoz se arregalaram e ele parou de respirar. Garrosh esperou. Ele queria ter certeza. Os minutos se passaram, e ele por fim grunhiu com um aceno.
— Foi um fim melhor que o que você merecia.
Ele deixou o corpo ali mesmo. Quem o encontrasse veria apenas um orc que tinha aborrecido a pessoa errada.
"E não foi isso mesmo que aconteceu?" Garrosh sorriu.
Ele encontrou um pequeno riacho ali perto e lavou o sangue das mãos e do estilhaço. Seus pulsos atados tinham sido esfregados na luta e ardiam. Não havia nada a fazer por enquanto. A chave dos grilhões estava a muitos mundos de distância.
Como agir agora? Ideias elaboradas surgiam e sumiam rapidamente. Kairoz tinha razão: sutileza não era o forte de Garrosh. Se ele se aproximasse com astúcia em demasia, se desse algum sinal de manipulação, seu pai o degolaria no ato. Grommash Grito Infernal não era tolo.
Ou será que era?
Medo se agitou na barriga de Garrosh. Ele fora tão jovem. Mal se lembrava de seu pai. "E se ele não for o orc que eu espero?" Grommash Grito Infernal tinha sido enganado e tornara-se um escravo dos demônios. Ele se redimira no final, provando que tinha um coração forte, mas não fora infalível.
Garrosh considerara o problema por dias e ainda não sabia a resposta. "Como convencer um dos orcs mais fortes do mundo de que ele é fraco?"
Não, decidiu ele. Chega de esperar. Ele enrolou o estilhaço na faixa de Kairoz e enfiou no cinturão. Grommash reconheceria a força do coração de Garrosh ou não.
Garrosh começou a caminhar. Ao nascer do sol ele saberia se viveria ao lado do pai ou se morreria nas mãos dele.
"Lok-tar ogar", sussurrou ele.
Continua ...
Por Robert Brooks
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