domingo, 25 de dezembro de 2016

Demônios do Paraíso - Cap I - Planeta Shiloh, Confederação dos Homens

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“Ataques kel-morianos em três das cinco áreas contestadas do setor Koprulu pressionam as forças confederadas a oferecer uma resposta à altura das táticas de guerrilha que as corporações de mineradores vêm adotando recentemente. O consequente aumento nos gastos militares tem sido catastrófico para outros setores da economia, com o apoio à agricultura sofrendo os maiores cortes dos últimos anos. O impacto mais forte é sentido por agricultores independentes, e o número de
pedidos de falência nos mundos agrários continua a subir.”

Max Speer, Jornal da Noite da UNN

Novembro de 2487



PLANETA SHILOH, CONFEDERAÇÃO DOS HOMENS

O sol da manhã era uma bola de fogo ofuscante no céu enquanto o ar tremia ao subir da longa fila de caminhões-tanque que serpeava pela estrada até o outro lado da colina. Apertando os olhos por trás dos óculos escuros, Jim Raynor parou o caminhão, desligou o motor e recostou o corpo no banco. A
hora já perdida na fila fora mais que suficiente para memorizar até os menores riscos e manchas da traseira do veículo parado à frente. Pela janela da cabine, seus olhos miraram a paisagem familiar. Já havia mais de um mês que a terra estava completamente seca, e o pior da estiagem ainda estava por vir. Depois de um breve interlúdio, o inverno cairia como um martelo para cobrir a terra com uma espessa camada de branco. “O vento sopra quente e frio”, dizia o pai de Raynor, “mas de todo jeito Shiloh é dureza”.

Acostumar-se à tediosa rotina era difícil para um jovem como ele, com 18 anos e transbordando energia, mas as primeiras semanas do racionamento de gás vespeno passaram sem que ele fizesse uma só reclamação. Seus pais já tinham preocupações demais.

A Guerra de Corporações consumia os recursos destinados ao planeta e, segundo seu pai, à maioria dos outros mundos também. Como resultado, fazendeiros eram obrigados a lidar com racionamento de combustível, a população nas cidades tinha que enfrentar a falta de alimentos e todos pagavam mais impostos. Mas se resignavam e faziam o que tinham que fazer, sabendo que o sacrifício ajudaria a protegê-los da União Kel-Moriana. O fone de Raynor tocou sobre o console, e o rosto de Tom Omer surgiu. O outro jovem estava ao volante do caminhão-plataforma do pai, três veículos atrás.

— Olha isso — disse Omer. Sua imagem então desapareceu, e, ao mesmo tempo, um holograma surgiu no banco do passageiro. Peças flutuantes de um quebra-cabeça surgiram às centenas; montadas corretamente, formavam uma figura tridimensional. Omer havia encontrado a figura em algum lugar e usado um aplicativo do fone para recortar, misturar e exibi-la.

— Vou começar a contar o tempo. Vai!

As peças eram minúsculas, nenhuma maior que 2 centímetros, e vinham em todos os formatos possíveis, mas ele logo reconheceu padrões de cores e estendeu rapidamente o indicador direito para interagir com elas. Mesmo cometendo alguns erros — prontamente corrigidos —, uma imagem de
Anna Harper com o uniforme de torcida logo começou a se formar.

— Que beleza — disse Jim em tom de aprovação.

— Mais que isso. É a minha futura esposa — respondeu Omer. — Uma pena que ela nem saiba que eu existo.

— Ah, você não está perdendo nada. Anna não tem conteúdo.

— Conteúdo? — contestou Omer. — Quer saber, Jim? Só você mesmo pra dizer algo assim. De qualquer maneira, você terminou em quarenta e seis segundos. Nada mau para um bitolado em motor de carro. O que tem pra mim?

Raynor percorreu várias imagens armazenadas na memória do fone, abafando a gargalhada que quis escapulir quando encontrou uma de Omer vestido de palhaço na sexta série.

— Essa é tão fantástica que você nem vai lembrar quem é Anna — disse, sorrindo. Usando o aplicativo de edição de imagens, picotou e enviou a foto.

— Vou dar meia hora, e você vai precisar de cada segundo. — O silêncio indicava que Omer já trabalhava no quebra-cabeça.

Raynor voltou a atenção para a estrada, mas sua mente estava distante. Quanto mais a formatura se aproximava, mais o futuro o assombrava. Ele havia passado a vida inteira na fazenda, e, mesmo que a terra não fosse da melhor qualidade, ela seria dele algum dia — isso se seus pais não acabassem
tendo que vendê-la para pagar os impostos, que continuavam a aumentar.
Jim pensou que se trabalhasse o suficiente para ajudar a família a passar pelas dificuldades e a Confederação ganhasse a guerra, a situação melhoraria e ele poderia se concentrar nos próprios objetivos por algum tempo, quaisquer que fossem eles. O corte no suprimento de gás, no entanto, não contribuía em nada com seu plano — como a cota de sua família não era suficiente para produzir uma colheita rentável, o horizonte tornava-se nebuloso.

A tosse seca da ignição de mais de cem caminhões interrompeu o silêncio e os pensamentos de Raynor, que girou a chave e engatou a primeira marcha. Mais ou menos 30 metros percorridos e era hora de parar de novo, então ele desligou o motor para economizar combustível e voltou a esperar.

— Muito engraçado — disse Omer ao terminar o quebra-cabeça. — Você vai ver, vou hackear seu fone e apagar esse arquivo. Raynor gargalhou.

— Então é melhor eu fazer um backup. Nunca se sabe quando um pouco de chantagem pode ser útil.

— Ei, Jim, você ainda está aí? — Uma voz estalou no fone de ouvido que Jim usava.

Ele estendeu a mão para ativar o microfone.

— Oi, Frank. Sim, ainda falta um bocado.

Frank Carver era colega de Jim na equipe de demolição de Centerville, um esporte de alta octanagem praticado nas partes menos refinadas do setor Koprulu, bastante parecido com as antigas corridas de demolição. Veículos eram construídos e corriam com o duplo propósito de chegar primeiro e destruir os veículos adversários. Desde o início da guerra, no entanto, o esporte definhara, principalmente devido ao racionamento de combustível e outros materiais.

— Pra mim também. Parece que as coisas hoje estão mais lentas que o normal. Você vai até a cidade hoje à noite?

— Não. Não posso — respondeu Raynor. — Temos que colher o trigo.

A voz de Omer zumbiu na frequência.

— A colheita já vai ter terminado quando você sair dessa fila.

Raynor viu uma nuvem de fumaça preta sair de debaixo do caminhão à frente, que começou a se mover.

— Ei, Omer — disse um homem ao fundo da transmissão —, ouvi dizer que você vai mesmo se alistar nos Fuzileiros. Não sabia que a reserva deles tinha uma reserva também! Parabéns, rapaz!
Um coro de gargalhadas soou enquanto os caminhões davam a partida outra vez.

— Muito engraçado — retrucou Omer. — Quando me vir no desfile da

vitória, vai beijar minhas botas por ter salvado sua vida! Raynor riu, mas o sorriso logo desapareceu de seu rosto. A despeito de tudo pelo que sua família passava, a guerra ainda parecia uma coisa
distante. Ver os próprios colegas se alistando era o primeiro sinal de que algo realmente estava acontecendo. Na cidade, histórias de soldados que nunca voltaram para casa se tornavam cada vez mais comuns. Mas Tom tinha razão — talvez voltasse como um herói, enquanto Jim ainda estaria no
mesmo lugar, preso à sucata de um robô ceifador, sonhando com o dia em que a monotonia seria interrompida. Nos últimos dias, Jim se pegou realmente sentindo inveja do garoto.

Com uma das mãos, Raynor limpou o suor do rosto, sentindo-a roçar na barba que crescia em seu queixo. Esticando o pescoço, fitou a própria face no retrovisor. Por anos sonhara com o dia em que ostentaria uma barba como a do pai, e finalmente ela começava a dar o ar da graça. Enquanto examinava seus traços joviais, o rosto bronzeado se contorceu para um lado, depois para o outro.

Subitamente, houve um ronco. Um poderoso motor o arrancou de seus pensamentos.

— Jim, fica esperto! — berrou Omer pelo comunicador.

Pelo retrovisor do passageiro, Raynor viu um imenso caminhão- tanque de nariz abaulado encostar ao seu lado, pronto para se enfiar no pequeno espaço que o separava do caminhão à frente. Na porta do caminhão havia um adesivo da HARNACK CAMINHÕES.

Raynor engatou rapidamente a primeira marcha e avançou, mas era tarde demais; o outro motorista manobrou e, ao embicar o caminhão, pisou bruscamente no freio. Com isso, Raynor e os outros foram obrigados a fazer o mesmo no último instante; bastaram alguns segundos para que estrondos e o som de metal se retorcendo ecoassem mais atrás.

— Merda! — vociferou Raynor, unindo-se ao coro de xingamentos no comunicador.

A frustração acumulada injetou uma alta dose de adrenalina em sua corrente sanguínea. Raynor precisou de apenas alguns segundos para desligar o motor, puxar o freio de mão e saltar para fora da boleia, produzindo um estampido seco ao bater as botas no asfalto quente. A passos largos, ele cruzou a carroceria do caminhão atravessado na pista enquanto outros motoristas desciam das cabines.

— Pega esse fidumaégua! — esbravejou um dos caminhoneiros, apoiado pela maioria da multidão que se reunia.

Um dos fazendeiros locais tentou impedi-lo, mas Raynor o empurrou e, sentindo o sangue arder nas veias, postou-se ao lado da porta do motorista. No instante em que estendeu o braço para escancarar a porta e arrancar o canalha, ela se abriu abruptamente.

Usando shorts desfiados e uma camiseta, um jovem ruivo parou no degrau do caminhão com um sorriso sacana estampado na cara e mascando chiclete. Raynor o reconheceu imediatamente — era o astro da equipe de demolição de Bronsonville. Em um segundo, a explosiva partida em que Harnack atirara o veículo sobre o seu no meio de uma curva, quase arrancando-lhe a cabeça, emergiu em sua memória. A multidão foi ao delírio, e Harnack se tornara uma lenda naquele instante.

— Qual é o seu problema? — urrou Raynor, tentando vencer o clangor cacofônico da música que emanava de dentro do caminhão.

— Meu problema? Estou olhando pra ele.

— Você é um idiota. E vai pagar pelos estragos que causou lá atrás!

— Tá bom, caipira, vou pagar com estrume fresco. Junta as mãos aí, vai.

Tomado pela fúria, Raynor agarrou as pernas de Harnack para desequilibrá-lo, mas o garoto se agarrou à porta do caminhão. Raynor saltou para evitar um chute no rosto, mas Harnack se jogou da cabine com a clara intenção de cair sobre ele e atirá-lo no chão.
Antecipando o movimento, Raynor conseguiu se esquivar bem a tempo de se regozijar com a visão do adversário se estabacando no asfalto.

— Pisa nele! — gritou um dos espectadores, mas Raynor balançou a cabeça e esperou o outro motorista se levantar.

O moleque tinha colhões, isso Raynor tinha que admitir, e se levantou em um pulo com os punhos levantados. A testa e o antebraço direito sangravam, mas nada nele indicava que estivesse intimidado.

— Pode vir, seu viadinho — atiçou o ruivo. — Quero ver o que mais você tem pra mim além dessa cara de idiota!

— Quantos anos você tem? Cinco? — Como seu pai lhe ensinara, Jim mantinha os punhos erguidos, em guarda, enquanto ambos se encaravam à espera de uma oportunidade.

— Quebra a cara dele! — gritou Omer do meio da multidão. —

Arrebenta ele!

Harnack desferiu alguns socos rápidos, forçando-o a recuar, e Raynor percebeu que não seria tão fácil. A resposta veio à altura, com um golpe que resvalou no rosto do adversário, mas o ruivo revidou com um soco na boca do estômago.

Raynor ouvia as pessoas gritarem, a maioria para incentivá-lo, mas os sons se fundiam num zumbido indecifrável. A primeira onda de fúria já havia passado, e o cérebro agora retomava o controle. Pense, disse ele a si mesmo, encontre uma fraqueza pra encaixar uns golpes fortes e acabar logo com isso.

Harnack avançou mais uma vez, com outra sequência de socos, mas Raynor se esquivou sem dificuldade. Então, do nada, enquanto evitava os punhos do adversário, Jim sentiu uma pancada violenta atingir sua nuca. Como assim? Ele girou rapidamente para confrontar o novo oponente, mas
deu de cara com uma peça de metal quente. Harnack o empurrara contra o retrovisor do caminhão!

Enquanto Raynor se virava novamente para encará-lo, o ruivo abriu um sorriso exultante e desferiu vários socos, a maioria dos quais Raynor conseguiu bloquear com os punhos e antebraços, ao mesmo tempo em que colava o queixo ao peito e se afastava com um movimento quase de dança.

— Volta aqui! — ordenava o jovem de cabelos vermelhos. — Vem lutar, seu boia-fria do caralho!

Foi então que Raynor viu Harnack apertar os olhos e percebeu que o sol o ofuscava. Com movimentos curtos e precisos, deslizou até ter certeza de que a luz estava nos olhos do adversário, plantou os pés no chão e desferiu um soco rápido. Vendo que algo se movia ligeiramente em sua direção, Harnack ergueu os braços para se defender, expondo o diafragma. Raynor aproveitou a oportunidade. Uma sequência de três socos, potencializados pelos braços fortes do trabalho na fazenda, atingiram a boca do estômago do ruivo feito britadeiras.

Harnack grunhiu enquanto o ar fugia de seus pulmões, curvou- se com as mãos sobre o estômago e, ao atingir o chão, vomitou no asfalto. Os habitantes da região vibraram com a vitória de um dos seus, e alguns adultos vieram tirar o valentão do meio da turba de jovens que gritava xingamentos
e ameaças.

Raynor começou a andar na direção de seu caminhão — tudo o que queria agora era entrar na boleia e fechar a porta antes que alguém percebesse como aquilo o havia balançado — mas Omer apareceu diante dele.

— Cara, que briga! — disse, apertando a mão de Raynor. — Foi muito maneira.

Raynor balbuciou alguns palavrões e cuspiu saliva rosa no chão quente e empoeirado. Vários de seus amigos vieram cumprimentá- lo, e, depois de uma rodada de saudações e tapinhas nas costas, um Raynor muito mais sorridente se virou com os amigos para ver o desfecho da cena.

Um dos fazendeiros entrou no caminhão de Harnack e ligou o motor, lançando uma nuvem de fumaça preta dos escapamentos duplos enquanto manobrava o veículo para o acostamento. Apoiado pelos cotovelos por dois homens, o jovem de cabelos vermelhos foi levado até o caminhão, onde lhe disseram que esperasse até que toda a fila terminasse de abastecer ou voltasse para casa. Harnack escolheu a segunda opção.

Os amigos de Raynor gargalhavam espalhafatosamente e berravam obscenidades enquanto o perdedor se arrastava de volta para o banco do motorista. Em disparada pelo acostamento, Harnack afundou a mão na buzina; no primeiro espaço que encontrou, cortou dois caminhões e guinou
na contramão, gerando uma nova balbúrdia. Em seguida, seu caminhão invadiu a pista da direita e rumou para o norte, na direção de Bronsonville, e ele se despediu com um cumprimento de um só dedo pela janela.

A fila avançava novamente, e houve alguma correria enquanto os motoristas voltavam aos seus veículos. De volta à cabine, Raynor avançou com o caminhão e esticou o pescoço para examinar o rosto no retrovisor. Foi só então que percebeu que um dos socos de Harnack acertara seu olho
esquerdo, que já escurecia e, em breve, estaria totalmente fechado. Ele praguejou. Aquilo era impossível de esconder. Sua mãe não ficaria nada feliz.

Raynor entrou na estação vinte minutos depois, onde foi recebido com acenos e sorrisos pelos outros caminhoneiros. Parecia que enfrentar o jovem Harnack havia lhe angariado respeito, e aquilo era bom.

Com o tanque pela metade — tudo o que sua família podia pagar —, Jim ligou o motor do caminhão, esperando que o combustível fosse suficiente para colher a maior parte da safra, se não toda. Era melhor que nada.

Continua ...

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