Pirilampo - Por Michael Chu
Eu peço seu perdão, pois há muito o que falar sobre a arcanista, e eu sou o único que pode contar toda a sua história. Este é meu fardo, bem como o que me aguarda depois. O final não é um grande mistério. Está escrito nas pedras estilhaçadas e paredes esfaceladas ao nosso redor e é sussurrado nos boatos que saem de todas as bocas.
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Mas, quando o assunto é magia, nada é tão simples, e esteja certo de que o que você viu e ouviu não é toda a história.
Enquanto eu convalescia em minha cama, após os médicos descartarem risco de vida, eu não tinha nada para fazer além de revisitar as lembranças distantes dos dias antigos, em busca do padrão que prenunciasse esta grande catástrofe. Eu a conheço melhor do que qualquer um, melhor do que ela própria, embora ela jamais vá admitir isso. Ela pode muito bem ser a mais poderosa arcanista de nossa era. Seu coração é puro e ela não quer nada além de fazer o bem, mas ainda é tola às vezes e se crê invencível. Erros da juventude e da genialidade. Não há regra que ela não quebre, e ela jamais entendeu o significado das palavras "não pode" e "não deve". Foi assim desde que nos conhecemos, há tantos anos.
Em um dia parecido com este.
Isendra, a feiticeira, veio até meus aposentos trazendo uma jovem à sua frente. As duas eram tão diferentes quanto fogo e gelo. Isendra tinha uma aparência régia e resplandecente, vestida numa bela túnica verde, coberta de joias de ouro, enquanto a jovem parecia um pássaro amedrontado e curioso com a cabeça indo de um lado a outro e os olhos disparando por toda parte, fascinados pelos objetos em volta: os livros nas prateleiras, as fileiras de frascos cheios de líquidos e pós estranhos e os instrumentos arcanos cujo uso era um mistério para mim. A túnica da jovem não passava de trapos rotos e manchados de suor e poeira. Ela passaria facilmente por uma das crianças de rua que atormentavam os mercadores ricos no bazar de Caldeum. Seus cabelos negros eram um ninho de passarinho, embaraçados e quebradiços, empastados de lama e pó como o resto. Sua pele estava queimada de sol e seus lábios estavam rachados e descascando.
Isendra olhou para a garota, hesitante.
— Eu a encontrei no pátio duelando com Mattiz, Allern e Taliya.— A voz da feiticeira evidenciava irritação.— Eles estavam ansiosos para aceitar o desafio.
— Ela não parece machucada — respondi. — E quanto aos outros?
— Mattiz e Allern estão sendo atendidos pelos médicos. Taliya machucou somente o orgulho próprio.
A menina sorriu ao ouvir aquilo.
— Talvez tenha sido melhor assim — observei. — Aqueles três bem merecem uma lição de humildade. Falarei com eles mais tarde.
— Mas você vai falar comigo agora, vovô — disse a menina. Ela tinha uma voz forte de comando, amplificada pela coragem nascida da confiança infantil.
— Ela fala! — comentei e sorri para Isendra.
— Ah, fala — disse Isendra, secamente. — E bastante.
— Quem é você? — perguntou a menina. — Por que você me trouxe aqui?
— Eu sou Valthek, alto conselheiro dos Vizjerei e mestre dos clãs de magos do Santuário Yshari.
A menina ficou em silêncio por um bom tempo, me observando.
— Você? — ela perguntou por fim.
Eu ri.
— Diga-me, menina, quem é você e por que você veio? Com certeza você ambiciona algo mais do que mandar meus aprendizes para a enfermaria.
— Meu nome é Li-Ming. E eu não sou uma menina. Eu sou uma arcanista.
— Eis aí uma declaração ousada — ironizei. Tive que me esforçar para conter o riso ao ouvir a menina usar o título de "arcanista", reservado apenas aos magos mais famosos da história, sempre citados pelo povo e pelos conhecedores das artes arcanas com medo e pavor.
— Não são só palavras — retrucou Li-Ming, com um tom sinistro.
Ergui a mão para acalmá-la e disse:
— Então me mostre.
Eu mal acabara de falar quando um forte sopro de vento cruzou a minha mesa, espalhando todos os papéis, livros e tinteiros e derrubando tudo no chão em um monte desordenado. Minha expressão permaneceu neutra, e foi interpretada pela menina como um pedido de bis. Li-Ming abriu os braços e criou duas bolas de fogo na palma das mãos. O fogo se insuflou até o teto, a explosão de ar quente soprou seus cabelos em desalinho, e as chamas refletiram naqueles olhos castanhos.
Eu dei de ombros, dizendo:
— Um mero truque de palco.
Li-Ming rilhou os dentes, frustrada. Fechou as mãos e as chamas desapareceram, embora o calor persistisse. Com outro movimento do braço, serpentinas incandescentes, vermelhas e cor de laranja, ganharam vida e dançaramem cima de minha mesa. A jovem moveu o braço novamente e fileiras de livros saíram das prateleiras e ficaram suspensos no ar. Ela os fez flutuar numa fila pela sala e eles a cercaram girando como se capturados por um redemoinho. Então, empilhou os livros um a um, no formato de um trono, sentou-se nele e me encarou.
A novata ergueu uma sobrancelha e eu respondi com um aplauso comedido.
— Isso é o melhor que você pode fazer, menina? — perguntei. Movi a mão displicentemente e as chamas em minha mesa se apagaram. Os livros em que ela se sentava caíram no chão, desordenados. Li-Ming se levantou com um pulo e evitoucair junto com o trono. — As pessoas temiam os magos chamados arcanistas. Eles deixaram o mundo à beira da destruição muitas vezes, e seu imenso poder incontido fazia a terra tremer com seus planos. Eles se associavam com demônios do Inferno Ardente e faziam pactos para condenar todos nós. Trapaceavam a morte e destruíam o próprio tecido da realidade. Você bagunçou os objetos de um velho e ateou fogo numa mesa.
— Eu consigo fazer mais — argumentou ela, defensivamente.— Um dia eu vou ser a maior arcanista do mundo.
— Pela minha experiência, é possível esperar um longo tempo por esse dia e ainda se desapontar quando ele finalmente chega.
— O senhor ouviu falar do milagre do Vale do Rio das Garças?
— Eu ouvi falar dessa história. Algo sobre uma seca, e uma jovem que tentou melhorar as coisas — respondi distraidamente. — Parece que chamaram essa menina de arcanista.
— Essa arcanista sou eu — orgulhou-se Li-Ming. — Fazia meses que não chovia e o Rio das Garçastinha secado quase completamente. Os campos tinham secado. O povo do vale achava que não havia nada a fazer a não ser esperar que os deuses nos salvassem. Mas eu sabia que podia fazer o que os deuses não podiam.
— É mais prudente não falar dos deuses tão levianamente. Você verá.
Li-Ming ignorou meu comentário e continuou:
— Eu procurei por toda parte. Coletei água de poços no fundo da terra e dos últimos fiapos de água que restavam em leitos de rio rachados. Juntei toda a água que consegui e a lancei ao vento para criar uma tempestade. Nada aconteceu a princípio, e as pessoas me chamaram de tola por ficar agitando os braços e orando por chuva. Mas eu sabia. As horas se passaram e o céu escureceu. Nuvens cinzas diáfanas apareceram, preenchendo o horizonte e aumentando de tamanho até obscurecer o sol completamente. As nuvens pesadas de chuva ficaram da cor da noite, e suas sombras se espalhavam pelos vales. Os que tinham rido começaram a acreditar. O som de trovão ecoou de todas as direções e clarões de luz acenderam as nuvens por dentro. O ar ficou úmido e eu senti o frescor na pele. A névoa desceu das montanhas e tornou-se garoa, a garoa tornou-se chuva, que se tornou um aguaceiro. A terra bebeu tudo e o Rio das Garças voltou a fluir. Isso é o que eu posso fazer.
Isendra parecia incrédula. Ela disse:
— Nenhuma criança conseguiria fazer isso.
— Só porque você não consegue não quer dizer que eu não consiga — disse Li-Ming à feiticeira, duas décadas mais velha.
— Eu também não acreditei, a princípio — expliquei a Isendra. — Mas ouvi as histórias a respeito. Aconteceu exatamente assim. Exceto por alguns detalhes que ela não mencionou.
O sorriso desapareceu do rosto de Li-Ming, embora seu queixo ainda estivesse erguido em desafio. Insisti:
Com a voz suave, Li-Ming explicou:
— Os que tinham me louvado exigiram que eu fosse expulsa. Meu pai e minha mãe concordaram. Eu só queria ajudar. Não sabia o que iria acontecer.
— As pessoas não confiam em magos. Elas temem o que não compreendem. Qualquer mago treinado no Santuário Yshari saberia dos perigos envolvidos no que você tentou fazer. — Ofereci um sorriso à menina e continuei.— E devo dizer... se eles tivessem tentado a mesma coisa, não creio que teriam conseguido nem metade do que você fez.
Li-Ming percebeu minha mudança de atitude e pediu:
— Então me ensine.
— Eu considerei isso. Mas agora que a conheci, não tenho certeza se você tem o que é preciso para estudar aqui. Você tem muito a aprender, mais ainda a desaprender, e não sei se você tem força de vontade para ir até o fim.
— Você não sabe o que diz! Eu sou mais forte que os seus aprendizes. Traga todos aqui e eu vou lhe mostrar! Eu enfrento até você se for preciso, vovô. Não importa. Atravessei mar e deserto para estudar aqui, e eu vou.
— A decisão não é sua. É minha — afirmei.
— Deixe-me ensiná-la — Isendra interrompeu abruptamente.
— O quê? — indaguei.
Li-Ming olhou desconfiada para a feiticeira.
— Tem algo diferente nessa menina. Como você disse, pode não dar em nada, mas eu e você vemos potencial nela. Pode acontecer, um dia, de nós precisarmos dela, e então nos arrependeremos de tê-la mandado embora. — Isendra sorriu. — E talvez eu veja um pouco de mim nela.
Li-Ming sacudiu a cabeça e reclamou:
— Eu não quero você. Quero que o vovô ali me ensine.
Isendra franziu a testa.
— Você devia estar feliz. Eu lutei contra os Senhores do Inferno quando você não passava de um brilho no olho do seu pai. E não fiz isso para acabar ensinando magia a uma criança mal-educada, mas eis a minha oferta.
— E minha resposta é não — desdenhou Li-Ming.
Eu fiquei em silêncio enquanto considerava se devia permitir tal parceria. Isendra não tinha páreo em suas habilidades e era quase como eu. Toda a sua experiência com certeza fascinaria a menina e prenderia sua atenção. Mas eu tinha algumas preocupações.
— Quietas, as duas — exclamei ao me levantar. — O conhecimento de Isendra sobre magia elemental rivaliza com o meu, e creio que vocês descobrirão que têm muito em comum. Não poderia haver melhor professora. Se eu fosse você, rezaria para que Isendra não reconsidere a oferta. Aceite-a, ou então vamos ver como você se sai sozinha. A história está cheia de arcanistas esquecidos que nunca deram em nada.
Li-Ming mordeu o lábio e resmungou:
— Eu não posso opinar?
— Não — respondi. — Não pode, não.
Continua...
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Conto por Michael Chu
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