sábado, 24 de dezembro de 2016
Alvorada dos Aspectos - Parte I - O Fardo dos Aspectos
por Matt Burns
Matei um dos meus.
O pensamento irromp eu na mente de Nozdormu, o Atemporal, no instante em que ele viu o dragão de bronze ressequido. Zirion encolhera-se numa carcaça com a metade do seu tamanho original. Lesões cobriam seu corpo da cabeça à cauda. Em vez de sangue, era areia dourada que cascateava das feridas em fluxos incontidos, tremeluzindo imagens fantasmagóricas da vida que ainda não vivera. O futuro sangrava de seu corpo.
Nozdormu cruzou um dos picos isolados do Monte Hyjal para postar-se ao lado de Zirion. Cada momento da história agitava-se em suas escamas da cor do sol. Observando o dragão agonizante, uma onda de desesperança o acometeu. Um véu impenetrável cobrira as linhas temporais, um que nem mesmo ele, o Aspecto da revoada dragônica de bronze, Guardião do Tempo, podia penetrar. Passado e futuro – que outrora ele podia ver com clareza – tornaram-se turvos.
— Onde estão os outrosss? — Nozdormu girou o poderoso pescoço na direção de
Tique, postada ao seu lado. A leal dragonesa transportara Zirion em suas costas a toda velocidade desde o covil da revoada de bronze nas Cavernas do Tempo, o que só foi possível graças ao estado de dessecamento de seu passageiro.
Tique ainda resfolegava devido ao esforço:
— Ele voltou sozinho.
— Como pode ser? — urrou Nozdormu com a voz tomada pela frustração. — Mandei
doze para o passado. Doze!
Ele incumbira seus agentes de investigar a condição perturbadora das linhas temporais, mas agora era incapaz de se livrar do pensamento de que tão somente lhes consignara à morte. De volta ao presente, os dragões deveriam ter se encontrado com o Atemporal no topo do Hyjal precisamente ao meio-dia. Já passava muito de meio-dia quando Tique, que não fora enviada às linhas temporais, chegou carregando Zirion.
— O que você viu, Zirion? — indagou Nozdormu, dando início a feitiços para reverter
o derramamento das areias do tempo que vertiam do dragão.
— Acho que ele não tem força para falar — interveio Tique.
O Atemporal mal ouviu. O impossível estava acontecendo: sua magia não surtia nenhum efeito. Suas ações foram previstas e eram combatidas por uma magia de igual poder.
Somente um ser possuía clarividência e habilidade para superar o Aspecto brônzeo nos domínios do tempo...
— Quando voltou das linhas temporais — prosseguiu Tique, hesitante — ele contou o que viu. Não importava que ponto da história tentassem alcançar, ele e os outros sempre emergiam num mesmo ponto no futuro... a Hora do Crepúsculo.
Nozdormu baixou a cabeça e fechou os olhos com força. Era isso que ele temia. As margens do tempo foram atadas e direcionadas para o apocalipse. Naquele futuro cinzento e desprovido de vida, até mesmo o Atemporal encontraria seu fim. Pelo menos era nisso que ele acreditava. Eras atrás, quando o titã Aman’Thul o imbuiu com o domínio do tempo, Nozdormu também passou a conhecer sua própria ruína.
— Quem causou os ferimentosss?
O Atemporal sabia a resposta, mas esperava acima de tudo estar errado... que aquilo que vira fosse uma anomalia.
— A revoada dragônica infinita e seu... líder. — Tique desviou o olhar.
Matei um dos meus. As malditas palavras ecoavam na cabeça do Aspecto. Antes, sua crença era de que a revoada infinita não passava de sintoma de uma linha temporal errática. Entretanto, por inconcebível que fosse, Nozdormu descobrira que, no futuro, ele e seus dragões de bronze abandonariam sua incumbência sagrada — proteger a integridade do tempo — e trabalhariam para subvertê-la.
Nozdormu refletiu sobre os eventos das semanas anteriores, lutando para controlar a raiva. Ele estivera aprisionado nas linhas temporais até recentemente, quando o mortal Thrall lembrou-lhe da Primeira Lição: viver o presente era muito mais importante que fixar- se no passado ou no futuro. O Aspecto de bronze emergiu do cativeiro com uma nova compreensão do tempo... só para ser confrontado por seus medos mais sombrios.
— Perdoe-me — sussurrou Nozdormu para Zirion, sem saber se o amado servo ainda podia ver ou ouvir. O dragão moribundo meneou a cabeça como sinal. Seu olhar vagueou de um lado para outro até que os olhos turvos e inexpressivos se fixaram em Nozdormu.
— Perdoe-me — repetiu o Atemporal.
Zirion escancarou a boca e seu corpo estremeceu. Era como se gargalhasse, mas Nozdormu logo se deu conta de que o outro dragão soluçava. Quando o que restava do futuro sangrou de Zirion, ele usou toda a força que lhe restava para se afastar de Nozdormu, os olhos tomados de terror.
O Monte Hyjal ecoava os sons da festança. Depois de uma série de atrasos, os Aspectos Dragônicos Alexstrasza, Ysera, Nozdormu e Kalecgos combinaram suas magias às dos xamãs da Harmonia Telúrica e dos druidas do Círculo Cenariano para restaurar Nordrassil, a antiga Árvore do Mundo. Mais recentemente, notícias davam conta de que o senhor elemental do fogo Ragnaros — cujos lacaios tentaram reduzir Nordrassil a cinzas — sucumbira em mãos mortais.
De onde Ysera, a Desperta, estava, aos pés da Árvore do Mundo, o júbilo reduzia-se a um zumbido distante. No refúgio Cenariano, o Aspecto da revoada dragônica verde ouvia apenas o relato de uma tragédia. Ela reunira-se com os outros Aspectos para discutir o próximo movimento contra Asa da Morte, líder ensandecido da revoada dragônica negra e responsável pela ruptura do mundo durante o Cataclismo. Apesar do recente triunfo dos defensores de Azeroth em Hyjal e outras regiões, o torturado Aspecto ainda planejava maneiras de deflagrar a Hora do Crepúsculo. Enquanto houvesse ar em seus pulmões, nada o impediria de concretizar seus planos perversos.
Em vez de debater estratégias, contudo, Nozdormu relatou a morte de Zirion e o último ataque da revoada dragônica infinita às linhas do tempo. Vincos marcavam de fora a fora o semblante élfico comumente tranquilo do Atemporal. Assim como seus irmãos, ele assumira sua forma mortal, algo que os Aspectos faziam sempre que estavam junto das raças de vida breve que residiam nos arredores de Nordrassil.
— Ele foi morto por minha magia... por mim — balbuciou Nozdormu. Ysera observava inquieta. Apesar das palavras terríveis do Atemporal, ela notou que tudo ao seu redor parecia distante. Ela pairava entre o mundo desperto e o reino dos sonhos sem se ancorar em nenhum.
— Devo retornar ao ponto de encontro. — O Aspecto de bronze entrelaçou as mãos com ansiedade, movendo-se inquietamente. — Outros agentesss podem estar a caminho, mas não tenho certeza. Só me resta esperar.
Quando Nozdormu se virou para partir, Ysera buscou avidamente palavras de conforto para lhe oferecer. Estava claro que ele se resignara ao destino. Aman’Thul incumbira-lhe de preservar a pureza do tempo a despeito de que eventos haviam se passado ou estavam por suceder. De alguma maneira, o fardo do Atemporal parecia errado para Ysera, mas não lhe cabia questionar as tarefas de outrem.
O que dizer a um ser que faria tudo para proteger os dragões de sua revoada, mas agora se responsabiliza por uma morte entre os seus?, ponderou ela. Sua mente era um turbilhão de pensamentos fragmentados. Era como se estivesse de pé numa vasta biblioteca devastada por
um furacão. Páginas repletas de imagens e ideias rodopiavam diante dela, todas partes de diferentes livros.
Antes que a Desperta pudesse se ater a algo significativo, Nozdormu partiu. Um silêncio soturno se instaurou. Os elfos noturnos, que normalmente habitavam o refúgio druídico, eram gentis o suficiente para esvaziá-lo durante reuniões dos Aspectos, mas a ausência de vida e agitação dava ao lugar um aspecto frio e vazio.
— Pouco importa se a revoada infinita opera orquestradamente com Asa da Morte — disse Alexstrasza, a Mãe da Vida, rainha de sua espécie e Aspecto da revoada vermelha. — A razão pela qual todos temos que concordar em permanecer em Hyjal é desenvolver estratégias acerca da melhor maneira de lidar com ele. A tribulação nas linhas temporais é ainda mais evidência de que devemos ser céleres em nossas ações. Kalecgos, sua revoada continua com as investigações?
— Sim. — O Aspecto da revoada azul limpou a garganta e endireitou as costas. O trato sempre amável de Kalec tornara-se nos últimos tempos obtusamente formal. O mais jovem entre os Aspectos, ele fora escolhido pouco tempo atrás para liderar sua revoada após a morte do antigo líder, Malygos. Ysera presumia que Kalec estivesse tentando provar seu valor perante os outros Aspectos, quando, a bem da verdade, eles já o viam como igual.
Kalec cortou o ar com a mão e várias runas brilharam em seu rastro, detalhando os experimentos conduzidos por sua revoada. Os azuis perscrutaram os antigos repositórios de sabedoria guardados em seu lar, o Nexus, em busca de pistas a respeito das fraquezas de Asa da Morte. Os dragões de Kalec eram os guardiões da magia; se a resposta estivesse oculta no arcano, eles a encontrariam.
— Recuperamos sangue de Asa da Morte do reino elemental do Geodomo, onde ele se escondeu por longos anos. As amostras eram reduzidas, mas suficientes para nossos testes.
— E o que há de resultados até então? — A voz de Alexstrasza estava repleta de expectativa. Ysera jamais vira a irmã tão esperançosa nas infrutíferas reuniões.
— Ao imbuir o sangue com magia arcana em quantidade que destroçaria qualquer outro ser, as amostras simplesmente se enfurecem. O sangue se divide e ferve, mas por fim se recupera.
— Nem mesmo magia arcana surte efeito. — A Mãe da Vida encolheu os ombros.
— Mas nossos testes apenas começaram — acrescentou Kalec rapidamente. — Acredito que seja necessário termos uma ferramenta à disposição quando enfrentarmos Asa da Morte.
Números, não importa quão grandes, pouco podem ajudar. Precisamos de uma arma...
diferente de todas que vieram antes. Minha revoada não descansará enquanto não alcançar uma solução.
— Obrigada. — Alexstrasza se virou na direção de Ysera. — Você recebeu alguma visão digna de nota?
— Não... ainda — respondeu Ysera um pouco envergonhada. Durante as reuniões, por muitas vezes a Desperta sentiu-se como nada mais que uma mosca na parede. A titânica Eonar concedera-lhe domínio sobre a natureza e sobre o vistoso reino florestal conhecido como Sonho Esmeralda. Por milênios ela viveu lá como Ysera, a Sonhadora, e fora despertada do Sonho pouco antes do Cataclismo. Ysera, a Desperta, foi como passou a ser chamada. Seus olhos, cerrados por muito tempo, estavam abertos, mas ela perguntava a si mesma o que deveria ver.
— Mantenha-nos informados se algo lhe ocorrer. — A Mãe da Vida sorria, mas Ysera podia sentir sua ansiedade. — Amanhã falaremos novamente.
Com isso, a reunião terminou exatamente como começou: sem respostas. Na manhã seguinte, Ysera caminhou pelos acampamentos espalhados por toda a base de Nordrassil. A grandiosa Árvore do Mundo elevava-se muito acima dela; seu dossel ocultava- se em uma espessa camada de nuvens. Aqui e acolá, xamãs da Harmonia Telúrica e druidas do Círculo Cenariano meditavam pacificamente. Com a cura de Nordrassil, Ysera ensinara aos druidas como fundir seus espíritos às raízes da árvore para ajudá-las a se fixarem no solo. Ao mesmo tempo, os xamãs se empenhavam em pacificar os elementais da terra, concedendo às raízes passagem livre rumo às profundezas de Azeroth. A tarefa significava uma união sem precedentes de dois grupos díspares e mortíferos. Por mais que Ysera se
sentisse encorajada, ela sabia que seus nobres esforços de nada adiantariam se Asa da Morte continuasse livre para perseguir seus objetivos.
A Desperta seguiu até um círculo de árvores isolado a nordeste da Árvore do Mundo. Quando encontrou uma clareira no bosque, Thrall já esperava por ela, imerso em meditação. Ysera sentia um profundo respeito pelo orc xamã, provavelmente mais do que ele podia perceber. Semanas atrás, Asa da Morte e seus aliados desferiram um ataque contra os Aspectos verde, vermelho, azul e bronze; ele os teria destruído se não fosse pela intervenção de Thrall. Ele ajudara na reunião dos líderes dragônicos e os lembrara de sua tarefa de salvaguardar Azeroth. Os Aspectos estavam mais unidos agora do que estiveram em mais de dez mil anos.
— Thrall — disse suavemente a Desperta. A Natureza se agitou ao som de sua voz. O vento balançou as longas tranças negras do orc. A grama ciciou sob suas vestes simples. E nem assim o xamã abriu os olhos.
Ela estava surpresa com seu nível de concentração, mas sabia que isso não viera facilmente. Durante a primeira tentativa de recompor Nordrassil, os servos de Asa da Morte emboscaram Thrall e cindiram sua mente, corpo e espírito entre os quatro elementos — terra, ar, fogo e água. Foi uma heroína mortal — Aggra, a companheira de Thrall — quem o salvou. Desde então, Thrall manifestara uma ligação com a terra que ia além da mera comunicação com os elementos. Ele era capaz de sentir Azeroth como se fosse parte dele,
vinculando-se ao mundo de forma miraculosa. Ysera acreditava que no processo de reformar o espírito do orc, a essência de Azeroth passara a integrá-lo.
— Thrall. — Ysera pousou gentilmente a mão no braço do xamã.
O orc finalmente despertou de sua meditação e se ergueu:
— Lady Ysera, comecei sem você. Minhas desculpas.
— Estou aqui apenas para ajudar quando você necessitar — respondeu o Aspecto verde a fim de tranquilizá-lo.
— Se me permite perguntar, como foi a reunião?
Ysera fez força para responder:
— Houve progresso — disse, e mudou logo de assunto. — Podemos começar?
— Sim.
Thrall voltou a se sentar, Ysera o imitou. Havia muito ela aprendera que a melhor maneira de ensinar era por meio de demonstração. Enquanto o espírito de Thrall se fundia à terra, ela se ligava às raízes de Nordrassil. Eram magias diferentes, mas o princípio da concentração era o mesmo.
— Você tem experimentado os mesmos problemas de antes? — perguntou Ysera. Thrall contara-lhe sobre sua falha ao se vincular à terra para além do Hyjal, como se barreiras mentais bloqueassem seu espírito. O orc estava determinado a compreender suas novas habilidades, mas parecia hesitante a respeito de se aventurar em Azeroth.
— Sim. — A frustração fez Thrall franzir a testa. — É como se eu estivesse de pé na arrebentação de um imenso oceano. Quanto mais sigo rumo às profundezas, mais distante me sinto da praia...
— Thrall — disse Ysera, colhendo um punhado de terra para depositar na mão esquerda do orc —, isto é Azeroth. Se seu espírito pode penetrar neste solo, ele pode ir onde quiser. Hyjal não é uma âncora mágica; é a mesma terra que jaz sob as ruas de Orgrimmar ou a Selva do Espinhaço. O mundo é um só corpo.
— Um corpo... — O orc observou o solo e riu calorosamente. — Muitas vezes os problemas mais difíceis são resolvidos pelas respostas mais simples... as coisas que estão debaixo de nossos narizes. Meu antigo tutor, Drek’Thar, disse isso muitos anos atrás. Você tem muito em comum com ele. Sabedoria e paciência... Não importa que obstáculos eu encontre, você sempre sabe como superá-los.
Diante da ironia das palavras de Thrall, Ysera permitiu-se sorrir.
— Essa será minha âncora. — O xamã segurou firme a terra em sua mão.
Thrall fechou os olhos e respirou fundo. Ysera fez o mesmo e, então, disse:
— Cale seus pensamentos. Desprenda seu espírito da carne e sinta a terra ao nosso redor. Saiba que as rochas sob você são as mesmas que estão sob mim. Saiba que, se pode dar um passo, você certamente pode dar outro.
Ysera concentrava-se nas próprias instruções enquanto seu espírito se unia a uma das raízes colossais da Árvore do Mundo. Thrall acreditava que os poderes que desabrochavam não eram para ele, e sim uma casualidade. Na verdade, eles eram exatamente o oposto. Seu propósito estava claro, ainda que ele não soubesse. Os anos de dedicação ao xamanismo culminaram em uma extraordinária habilidade para se ligar à terra. A Desperta desejava alcançar uma sensação semelhante de completude.
Seus pensamentos vagaram rumo às reuniões com os outros Aspectos. Ela se concentrou em cada detalhe, indagando-se se havia uma resposta simples oculta em meio às discussões sem fim. A atenção da Desperta se voltou para Kalec. Algo que o jovem Aspecto dissera martelava em sua cabeça.
“Uma arma... diferente de todas que vieram antes”.
As palavras continham poder, um significado um passo além de sua compreensão.
“...diferente de todas que vieram antes. Ela deve ser única”. Uma voz familiar irrompeu
em sua mente; arrebentou como um vagalhão, levando embora milhões de ideias desconexas que vagavam em sua mente.
Ysera abriu os olhos em choque, mas não estava mais no Hyjal.
Ela flutuava por um salão soturno e cavernoso, que reconheceu como a Câmara dos Aspectos, domínio sagrado das cinco revoadas dragônicas. Abaixo dela, um conclave de dragões. Ysera — em uma versão do passado — estava entre eles, assim como Alexstrasza; Soridormi, principal consorte de Nozdormu; Malygos, o falecido Aspecto Dragônico azul; e... Asa da Morte.
Não... não a criatura horrenda do presente. Era Neltharion, o Guardião da Terra, outrora altivo Aspecto da revoada dragônica negra. Sem que seus companheiros soubessem, ele já fora corrompido pelos traiçoeiros Deuses Antigos — seres da insanidade incalculavelmente poderosos aprisionados na terra pelos titãs — e abandonara seu dever de proteger Azeroth.
Ysera distinguiu imediatamente o período; mais de dez mil anos atrás, durante a Guerra dos Antigos. A demoníaca Legião Ardente invadira Azeroth e os Aspectos estavam reunidos para realizar uma cerimônia que salvaria o mundo da aniquilação, esperavam eles. Um disco dourado pairava no centro do círculo formado pelo grupo.
À primeira vista, parecia um objeto sem importância. Era, contudo, a arma que assolaria a unidade das revoadas dragônicas... a arma que assassinaria incontáveis dragões azuis e conduziria Malygos a milênios de isolamento. A Alma Dragônica.
Ysera assistiu horrorizada à conclusão do ritual. Todos os Aspectos — salvo Neltharion
— permitiram que parte de sua essência fosse sacrificada a fim de conceder poder ao artefato. Os dragões tomaram a drástica ação convencidos de que o disco seria usado para repelir a Legião de Azeroth.
— Está feito... — declarou Neltharion. — Todos deram aquilo que deveria ser dado. Eu agora selo a Alma Dragônica por todo o sempre, para que o que foi feito nunca se perca. Um ameaçador brilho negro envolveu o Guardião da Terra e o artefato, sugerindo sutilmente sua verdadeira natureza.
— Deve ser assim? — questionou a Ysera do passado em voz baixa.
— Para que seja como deve ser, sim — retorquiu Neltharion, pouco preocupado em dissimular a provocação.
— É uma arma diferente de todas que vieram antes. Ela deve ser única — acrescentou
Malygos.
Depois da fala de Malygos, as paredes da câmara se racharam e sucumbiram como cacos de vidro, revelando o terreno esmeralda da clareira. Thrall permanecia fixo em seu estado meditativo, alheio à visão de Ysera. Ela mal olhou para o orc ao se levantar, tentando encontrar sentido no que acabara de presenciar. É errado pensar que a Alma Dragônica poderia ser a salvação de Azeroth depois de todo sofrimento e morte que causou?
A Desperta correu do bosque em busca de Kalec e Alexstrasza. Os outros Aspectos pensarão que enlouqueci quando eu propuser usá-la para nossos próprios fins. Apesar da apreensão, um único pensamento a movia adiante: O reinado tirano de Asa da Morte deve acabar como começou.
O solo não estava na mão de Thrall. Ele percebeu que, na verdade, era parte dele tanto quanto os dedos eram parte de sua mão; cada qual único, mas partes iguais de algo maior. O espírito do orc penetrou na terra abaixo e, então, rumo às profundezas do Hyjal. Ele sentia cada pedra, cada grão de areia como se fossem extensões de si. Os caóticos elementais terrenos, que ele tanto se esforçara para acalmar, aceitaram-no — abraçaram-no — como se ele fosse um deles.
A montanha estava viva, ativa. Xamãs — Aggra entre eles — sussurravam para a terra como um coral harmonizador, acalmando o espírito de Thrall assim como fizeram com os elementos. Em algum lugar, druidas guiavam as raízes de Nordrassil cada vez mais fundo nas entranhas de Azeroth. A essência do orc movia-se com elas, enquanto rochas irregulares e formações de granito se desfaziam em terra fofa para que a Árvore do Mundo pudesse se nutrir e, assim, fortalecer a terra. Integrando o ciclo de cura, ele se revigorou. O espírito de Thrall alcançou o sopé da montanha. Era o mais longe que ousara ir. O vínculo com seu corpo físico estava tão distante quanto nas tentativas anteriores. O orc se concentrou na vaga sensação do solo em sua mão, repetindo a lição de sabedoria de Ysera. Isto é Azeroth... O mundo é um só corpo.
Encorajado pelas palavras, Thrall libertou o coração de todas as reservas e mergulhou em Azeroth.
Sua essência cruzava impetuosamente léguas e léguas com a terra se abrindo ao seu redor. Ele percorreu o solo castigado pelo sol de Durotar e seguiu para os lamaçais do Pântano das Mágoas. Todas as regiões, por mais remotas ou distintas que fossem, estavam ligadas de uma maneira que ele jamais compreendera.
Além das partes que conhecia, Thrall se deparou com lugares e peculiaridades de Azeroth que ignorava completamente. Em algum lugar do Grande Oceano, uma misteriosa ilha envolta em névoas...
Sob os Reinos do Leste, uma presença invadia as montanhas de Khaz Modan. Um espírito poderoso, mas não elemental. Estranhamente, ele era como Thrall: um mortal que transcendera os grilhões da carne. O ser desconhecido patrulhava as terras ancestrais da região como se mantivesse uma vigília silenciosa. E falava com um sotaque enânico que ecoava por toda Azeroth.
— Pois é isso que somos, terrenos, da terra; a alma da terra é nossa, sua dor é nossa, seu
coração é nosso...
Thrall também viu as entranhas do mundo cobertas de lesões fundidas e outras feridas. Estarrecido, ele notou imensas cavernas, gélidas e artificiais, espalhadas por todo o globo. Bolsões privados de vida dos quais nem mesmo os elementais da terra queriam se aproximar.
Um dos vácuos ficava muito abaixo do Monte Hyjal. Thrall guiou seu espírito para o vazio subterrâneo. Diferente do restante de Azeroth, o que espreitava dessa caverna se escondia de sua visão. Ao se aproximar, uma única voz trovejou da câmara, emanando um poder incomensurável:
— Xamã.
Ela retumbava no espírito do orc como se Azeroth falasse com ele.
— Venha.
Thrall foi atraído para a fonte, compelido a perscrutá-la. Sua essência circulou os arredores da câmara até encontrar uma abertura nas paredes aparentemente intransponíveis. Enquanto seu espírito penetrava o vazio, rocha e pó entraram com ele. Os detritos se uniram e formaram pernas, tronco, braços e cabeça; dois cristais multifacetados serviram de olhos. Sua nova forma lembrava seu verdadeiro corpo físico, exceto pelo fato de ser composto da própria terra.
— Quem é você? — indagou Thrall com batidas secas que soavam mais como pedras se
chocando do que uma língua coerente. Poços de magma borbulhante emitiam a única iluminação do lugar. As paredes e o chão estavam cobertos com uma substância cristalina que de tão negra parecia consumir toda a luz à sua volta.
— Aqui — irrompeu uma resposta do centro da câmara —, aqui reside a verdade deste mundo.
Thrall penetrou mais fundo na câmara, atraído pela autoridade das palavras. Sua ligação com o restante de Azeroth e com seu corpo no Hyjal se esvaía a cada passo. No meio da caverna, uma figura humanoide postava-se com as feições cobertas por uma escuridão proposital, quase tangível.
Arrastando-se pesadamente, o orc continuou a se aproximar até que dois olhos se abriram no semblante do ser estatuesco e arderam com a cor de rocha fundida. Thrall cambaleou para trás quando as sombras que velavam a figura se dissiparam para revelar um grotesco humano. Uma peça de metal maciço moldada na forma de uma mandíbula fora parafusada à sua face acinzentada. Chifres irregulares ascendiam em curva de seus ombros e seus dedos terminavam em garras afiadas feito adagas, enquanto veias de lava cruzavam seu peito.
Ele não reconheceu o humano, mas pôde sentir quem era: Asa da Morte em sua forma mortal.
— A arrogância dos xamãs nunca falha em me surpreender — rugiu o Aspecto negro, sua voz soando como duas imensas rochas estilhaçando uma à outra. — Você busca tomar um poder que não é seu por direito... um poder além de sua compreensão.
Thrall correu de volta na direção da passagem. Placas de cristal negro desprenderam-se do chão e bateram contra a terra. O orc forçou a barreira com os ombros, rogando aos espíritos elementais que lhe dessem passagem. A substância pérfida não atendia aos seus clamores como os outros elementais terrenos de Azeroth.
— Intrigante, não? — bramiu Asa da Morte às suas costas. — O sangue dos Deuses
Antigos não responde aos seus choramingos, pois não é deste mundo. Só os escolhidos têm verdadeiro domínio sobre ele. Thrall girou na direção do Aspecto esperando um ataque, mas Asa da Morte permanecera imóvel.
— Tenho esperado sua chegada, observado seu espírito tropeçar cegamente pelas faces do Hyjal — disse Asa da Morte. — Eu presumia que você não teria coragem de se aventurar além da montanha, mas seu avanço comprova minhas suspeitas... os outros Aspectos querem lhe dar meus poderes. Eles querem me substituir por um mortal.
As palavras não faziam nenhum sentido para o orc. Apesar de suas habilidades agora aprimoradas, Ysera e seus companheiros lhe disseram que ele jamais se tornaria um Aspecto ou, por extensão, o Guardião da Terra.
— Eles não me deram esses poderes. — Thrall circulava a caverna junto à parede, tateando em busca de uma rachadura ou uma falha entre as placas de sangue dos Deuses Antigos. —A decisão de usá-los foi minha e somente minha. A câmara estremeceu com a gargalhada de Asa da Morte:
— Isso foi o que lhe disseram. Tenho olhos em muitos lugares, xamã. Eu sei que os outros Aspectos ficaram em Hyjal para tramar e que você está com eles. Como covardes, eles o atraíram para esse destino sem que você soubesse, para tornar sua a minha maldição.
— O que você recebeu foi uma dádiva, não uma maldição — retrucou Thrall. Ele aprendera muito a respeito dos titãs e dos Aspectos nos últimos tempos. Muito tempo atrás, o titã Khaz’goroth imbuíra Asa da Morte com controle sobre as extensões terrenas do mundo e o incumbira de protegê-las de todo o mal. A tarefa, entretanto, tornara-o suscetível à influência dos Deuses Antigos agrilhoados nas profundezas de Azeroth. As provações e tribulações que afligiram os Aspectos ao longo da história, da traição de Asa da Morte à iminente Hora do Crepúsculo, tudo era parte do grande plano dos Deuses Antigos para expurgar a vida do planeta.
— Dádiva? — grunhiu Asa da Morte. — Você está tão desinformado quanto os outros Aspectos, tolos demais para reconhecer que os fardos impostos a nós não passam de prisões.
— Os titãs lhe deram um propósito — retorquiu o orc. Seu vínculo com Hyjal estava mais tênue do que nunca. Ele sentia a terra escorrer por entre seus dedos a léguas de distância dali.
— Não há nenhum propósito no que eles fazem. — Asa da Morte caminhava pesadamente na direção de Thrall, cada passo retumbando por toda a câmara. — Azeroth era um experimento dos titãs. Um joguete. Quando terminaram, eles deram as costas a todos nós, indiferentes ao mundo fraturado que deixaram para trás.
— Ele foi fraturado pelo que você fez, porque você deu as costas à sua dádiva! — rosnou Thrall.
— Não é uma dádiva! — O corpo inteiro de Asa da Morte estremeceu de ódio. Notando que suas palavras surtiam efeito, Thrall continuou a açular o Aspecto, esperando que ele revelasse algum tipo de fraqueza:
— A dádiva que você não teve forças para suportar. A dádiva...
— Cale-se! — ordenou Asa da Morte. — Se insistir em falar em dádiva, assim será.
Você saberá o que é ser eu, receber esta graciosa dádiva... sentir o coração ardente deste mundo como se fosse seu. O peito telúrico de Thrall ardeu profundamente. As chamas incessantes que fulguravam no coração de Azeroth agitaram-se em seu espírito. Sua pele rochosa fumegava e chiava, brilhando com um vermelho sombrio e iracundo.
— Saiba o que é sentir o peso deste mundo agonizante sobre seus ombros. As pernas de Thrall estremeceram sob o peso de cada rocha de Azeroth. Seu corpo ruía, estilhaçava-se. Era mais que agonia física; seu espírito se desfazia, sufocado pela carga insustentável.
— A dádiva é doce como você pensou que seria? — zombou Asa da Morte. — É isso que os outros Aspectos querem: acorrentar você a este mundo como eu fui acorrentado.
Condenar você a uma vida de tormento eterno.
Continua ...
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