Creio que, naquele momento, Li-Ming começou a entender o perigo de suas ações e o que o fracasso poderia causar. Nós não falamos novamente da morte de Isendra até a última vez em que a vi. Será que Li-Ming sabia por que Isendra morreu? Sabia como ela foi morta?
Os acontecimentos de Lut Bahadur não arrefeceram nem um pouco o desejo de Li-Ming por conhecimento. Ela ficou obcecada em aprender mais e ter sucesso onde Isendra falhara. Ela passavahoras na biblioteca e sempre conseguia entrar onde era proibido. Apesar dos meus esforços, era impossível contê-la. Ela aprendeu magia temporal a partir dos escritos de magos que estenderam seus tempos de vida bem além dos homens normais e leu a respeito de outros que tinham ficado tão poderosos a ponto de iludir a morte, magos como o enlouquecido Zoltun Kell, que substituiu seu sangue pelas areias do tempo e não podia ser morto, apenas aprisionado. Tendo aprendido sobre a teia invisível de poder arcano, Li-Ming dominou a habilidade de se projetar de um lugar a outro com magia de teleportação. Dominou a arte de forjar ilusões vivas e assim criar duas imagens perfeitas de si mesma que imitavam suas ações. Ela leu pergaminhos e interpretou diagramas que ensinavam a desafiar e dobrar as forças invisíveis do universo. Seu poder aumentou muito, assim como minha preocupação.
Um pouco depois disso, Li-Ming fez sua própria escolha.
O teto em abóbada do enorme salão octogonal do Santuário Yshari era pintado com cenas da história dos clãs de magos. Oito portas abriam-se para saguões e outras câmaras, nenhum tão grande quanto o salão principal. Cada centímetro das paredes era coberto por tapeçarias espetaculares, e as lajes do chão vinham das pedreiras além dos Mares Gêmeos.
Quando eu entrei, Li-Ming estava no centro da sala, observando os padrões no assoalho. O salão estava vazio, exceto por nossa presença.
— Eu não queria ir embora sem avisar — começou Li-Ming, ao ouvir meus passos. — Acho que devo isso a você.
— E para onde você está indo? — perguntei.
— Uma estrela cadente atravessou os céus hojee caiu a oeste. Este é o sinal por que eu estava esperando. Você leu os mesmos livros proféticos que eu. Você sabe o que isso significa. Nós esperamos a invasão do inferno há vinte anos, mas ela nunca aconteceu. As histórias e as notícias sinistras que tenho ouvido no bazar me deixaram certa disso. Minha hora chegou.
— O seu lugar é aqui, como estudante do Santuário Yshari. Você é uma fagulha, e nosso mundo está seco e propenso a incêndios. Você não consegue se controlar, e se eu deixar que você parta, o que você pode causar será pior do que qualquer catástrofe que eu possa imaginar.
— Já não tenho mais nada a aprender com você.
— Você se lembra do dia em que nos conhecemos, Li-Ming? Hoje você sabe muito mais do que sabia então, mas você não ficou mais sábia. Se você partir, você será uma mera arcanista.
— Não preciso da sua sabedoria. Eu sou uma arcanista, e vou proteger o mundo, já que os magos não fazem nada! — Li-Ming me virou as costas.— Me deixe seguir meu destino. Você ficará a salvo aqui com seus livros e seus medos.
Ergui as mãos e, canalizando uma pequena quantidade de energia arcana, fiz com que todas as portas do Santuário se fechassem com estrondo. Uma a uma elas bateram até que ficamos presos no grande salão.
— Então eu tenho que deter você. — Enrolei cuidadosamente as mangas de minhas vestes. — Você foi minha melhor estudante, Li-Ming, e eu acreditei que, com o tempo, você poderia me suceder e liderar os clãs de magos. Achei que a aluna superaria o mestre. Lamento muito que as coisas tenham que acabar assim. Talvez o fracasso seja meu.
— Você foi um bom professor, Mestre. E eu aprendi suas lições. Mas você nunca entenderá a dádiva que nos foi dada. É por isso que eu o superarei — bradou Li-Ming, e suas palavras ecoaram pelo salão.
Eu vi os olhos de Li-Ming se estreitarem enquanto ela se concentrava. As tochas presas às paredes começaram a tremeluzir ao começarmos a drenar a energia à nossa volta. As mãos de Li-Ming se moveram para os lados do corpo e seus dedos se curvaram enquanto nos postávamos um diante do outro, imóveis feito rochas na correnteza de um rio. Abaixei meu cajado e o segurei à minha frente, usando-o para focalizar meu poder.
— Você já se perguntou, Mestre, se eu seria mais forte que você?
— Não — respondi sorrindo. — Nunca.
— Você terá que fazer melhor que isso — desafiei.
Li-Ming grunhiu de frustração. Desta vez ela disparou fogo das palmas das mãos em finos feixes iridescentes que avançaram até mim, e tive que me esquivar para escapar. Quando os raios atingiram a parede, marcaram a pedra como a lâmina de uma faca. Os raiosestraçalharam o piso de mármore e senti o chão começar a se despedaçar. Estendi os braços para diante, encontrando as pedras que ameaçavam se esfacelar e prendendo-as com fios invisíveis. Se as soltasse, o chão desabaria, e eu junto com ele. Sob o grande salão ficam as catacumbas, e eu não sobreviveria a uma queda daquela altura. O esforço de manter tudo suspenso era demasiado, e os nós de meus dedos ficaram brancos enquanto eu apertava meu cajado.
Bati com meu cajado no chão e o impacto soou como um trovão. Em um piscar de olhos, arcos de relâmpago faiscaram pelo salão. Onde eles pousavam, o chão explodia lançando estilhaços de mármore para o alto. O relâmpago explodiu com força percussiva e partiu em direção a Li-Ming. Mas sem acertá-la. As rebarbas retorcidas de luzcongelaram no ar enquanto Li-Ming estendia os braços para diante, se concentrando intensamente. Sem me deixar deter, continuei a evocar o relâmpago, e a tempestade ficou mais e mais forte. O relâmpago se abatia sobre Li-Ming como um leque aberto até que ela não pôde mais contê-lo. A eletricidade se propagou através dela e a arremessou no chão, explodindo ao redor numa cascata de faíscas e luz branca.
Li-Ming desapareceu.
Sem saber das intenções dela, incendiei a tempestade, e a eletricidade explodiu em um inferno de chamas que preencheu todo o grande salão e chegou a calcinar minha carne, ameaçando exaurir o que me restava de força. Quando Li-Ming apareceu novamente, estava cercada pelas chamas. Ouvi seus gritos conforme o fogo a queimava. As lajes estremeciam sob meus pés enquanto eu me aproximava. Mantendo o feitiço que impedia o chão de desabar, apontei meu cajado para a silhueta enrugada da arcanista.
O piso pareceu sólido, e eu me postei diante de Li-Ming, aliviado por conseguir me apoiar no chão.
— Você ainda tem muito o que aprender, Li-Ming.
Tentei golpeá-la com meu cajado, mas não atingi coisa alguma: o corpo de Li-Ming havia se dissolvido no ar.
Eu me virei a tempo de vê-la atrás de mim. Abri a boca e tentei lançar um feitiço, qualquer feitiço, mas uma explosão me desconcentrou. Perdi o controle do encantamento e do chão partido a meus pés. O chão tremeu, se despedaçou e tudo desabou. Caí longamente nas trevas, até bater no chão de pedra fria das catacumbas.
Eu fiquei lá, sentindo meu corpo maltratado doer, e me vi cercado pelo cheiro de fogo e poeira. Li-Ming flutuou até onde eu estava e pousou, ajoelhando-se perto de mim.
— Você acha que eu não aprendi suas lições, mas eu aprendi. Aprendi a lição da morte de Isendra. Mas eu recebi meu poder por um motivo, e é meu fardo usá-lo. E vou usá-lo, não vou ter medo dele como você.
— E se você não conseguir controlá-lo? — Minha voz saiu num sussurro rouco. — Com seu poder, você pode destruir o mundo.
— Então que o mundo chore. — Li-Ming virou as costas para mim. — Há algo que preciso perguntar, Mestre.
Fiquei quieto, pois sabia o que viria em seguida. Não havia mais nada que Li-Ming pudesse aprender comigo.
— Por que Isendra morreu? Me diga a verdade.
— Eu sei apenas o que você já sabe.
Li-Ming assentiu com a cabeça e começou a levitar.
Abri a boca para falar novamente, mas as sombras engolfaram tudo.
Continua ...
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